Segundo noticiaram diversos blogs e sites de quadrinhos, a Comissão para Igualdade Racial, na Inglaterra, ordenou que as livrarias parem de vender "Tintim no Congo", álbum de estréia do célebre repórter belga, criado por Hergé. (No Brasil, foi publicado com o nome oportuno de "Tintim na África".)
A medida foi desencadeada por um sujeito que, visitando uma livraria com a família, se deparou com o conteúdo do álbum e o denunciou aos balconistas como sendo racista. De fato, a história de "Tintim no Congo" insiste na imagem clássica - sobretudo nos anos 30 - do branco dominante e do nativo ignorante, ingênuo e submisso. Por duas vezes, Hergé e seus editores tiveram de fazer alterações na história.
Duas coisas sobre o Tintim no Congo e sua proibição:
1. Não acho correta a proibição. Ok, pode-se plastificar o álbum, vedando-o, e fazer uma advertência na capa, dizer que o conteúdo do produto traz mensagens colonialistas, subversivas, impróprias, sei lá. Pode-se, também, contextualizar o leitor com uma introdução. A Bélgica, à época, era um país colonialista. O Congo era uma sua colônia, e isso era, senão imoral, perfeitamente aceitável do ponto de vista dos direitos internacionais. Não se trata, com isso, de justificar ou inocentar o autor, Hergé. Mas, à luz dos tempos, Tintim no Congo é hoje uma obra histórica, um documento de época, podendo ser analisada como tal. Existem incontáveis documentos e obras de cunho colonialista, pró-escravagista, fascista, nazista, racista, anti-semita e toda a ordem de amoralidades. Não se deve proibi-los, e sim contextualizá-los devidamente, para que sirvam de objeto de estudo.
2. A obra de Hergé explicita sua posição colonialista perante o mundo. Tintim é um civilizado, um correto, um modelo. A Sildávia, em "O Cetro de Otokar", por exemplo, está prestes a sofrer um golpe de estado. Querem derrubar o rei. E não é que Tintim intervém em favor do rei, em prol de manter a ordem prestabelecida? Não importa, para a história, se o rei é um monarca absoluto, um ditador. Importa apenas que Tintim vai salvar aquela gente do pior. É a mesma coisa com os congoleses: acreditem em Tintim, pois ele vem da Bélgica, país civilizado, avançado, rico. Sigam-no e vocês vão se dar bem. Esse gênero de personagem, que representa ideais e sentimentos de uma inteira nação, ficou conhecido nos quadrinhos como "o herói". Nos comics americanos da época, ele se traduziu na figura do Flash Gordon (1934) - que, ao contrário de Tintim, quer é derrubar o imperador, o maligno Ming (não, seus traços orientais, seu nome, seu quimono, seu bigode afinado e o nome de seu planeta - Mongo - não são mera coincidência). Outros personagens dos comics também trazem estas características: o "Fantasma", de Lee Falk (1936) é o senhor imortal de uma ilha distante, Bengala. Assim como Tintim, ele domina e educa os nativos - no caso, os pigmeus. Tarzan também é o rei branco das selvas. A mensagem de todas estas HQ's, todas clássicas, todas maravilhosas, é sempre a mesma: o mundo está errado, e só o herói poderá consertá-lo. Este mundo pode ser as fictícias Bengala ou Mongo, mas também pode ser um real Congo - e aí reside a diferença da obra de Hergé para os comics, contemporâneos seus. Hergé pecou ao colocar seu nacionalismo colonialista em nosso mundo, palpável e real. Um avião, um trem, ou mesmo um ônibus, separam Tintim do mundo certo e do mundo errado. Os comics, espertamente, expediram o mundo errado para além deste planeta, ou para confins inexplorados e selvagens. Porém, os personagens destes mundos são os mesmos personagens que habitam o Congo, a Sildávia ou a corrupta América de Tintim. Estão apenas disfarçados, travestidos. Por isso, considero um tanto hipócrita condenar Hergé - e somente ele. Os quadrinhos desta época - que é considerada a época de ouro dos quadrinhos - são revestidos de graves e explícitos indícios de nacionalismo exacerbado, e refletem claramente a postura dos países que produziam estes quadrinhos.
Em resumo, eu jamais irei proibir meus filhos de lerem Tintim ou qualquer outro quadrinho. É preciso, apenas, situar o leitor, para que ele não seja levado pela ignorância e pela irracionalidade.
Um comentário:
Fabiano, muito lucida esta tua analise do 'caso Tintim', assino em baixo.
No mundo globalizado espalha-se a doença do politicamente correto, assim censuramos mas não explicamos (ou contextualizamos) os fatos. Antigamente os desenhos, mesmo se filo-colonialistas, não tinham esta doença. Lembro-me de Pinoquio, no filme da Disney, fumando um charuto, ficando verde, tragando mais... hoje ninguêm teria a ousadia de realizar uma cena assim (afinal cigarro mata), é mais tolerável uma saudável pancadaria...
Outro dia, excepcionalmente, deixei minha filha assistir um DVD que normalmente teria censurado: O diario da Barbie. A animação computadorizada tem efeitos de movimento muito realistas, eu fiquei impressionado com o resultado nos cabelos. A história não acompanhei direito -sou preconceituoso- mas reparei que Barbie tinha uma amiguinha negra (ops, afrodescendente) e uma asiatica, que nem nos comerciais do exercito brasileiro. Naturalmente ela continua loira...
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