23 dezembro 2011

O PONTO DE TANGÊNCIA

Entrevista com Miguelanxo Pradoem graffiti 6, de 1999

Miguelanxo Prado surgiu com aquela explosão revigorante que o quadrinho adulto conheceu nos anos 80. Autor camaleão, que passa com desenvoltura do sarcasmo distorcido de obras como ‘Mundo Cão’ às atmosferas melancólicas e palpitantes de ‘Tangências’, o artista galego parece ter encontrado, com seu estilo eclético e refinado, um meio para expressar em textos e imagens a necessidade insustentável do ser humano de comunicar.


Como surgiu o teu interesse pelos quadrinhos?
Bom, foi tarde. Quando eu era criança não era o típico menino leitor de quadrinhos, lia mas como qualquer outra criança, não tinha um interesse especial. Foi quando eu já estava na universidade estudando arquitetura que eu os descobri. Até então o que eu tinha feito era pintar e escrever como duas coisas que não tinham relação nenhuma entre elas. Gostava de escrever mas não participava de revistas de criação e de literatura. Pintava, já tinha feito exposições e ao mesmo tempo que estudava arquitetura tinha começado uma carreira como pintor, já tinha uma relação estável com galerias de arte. Então foi na escola de arquitetura que um companheiro chegou um dia com um monte de revistas...
Tem que entender, na Espanha durante a ditadura não chegavam os quadrinhos europeus. Não conhecíamos nada do que se estava fazendo na França, na Bélgica, na Itália... De repente, quando Franco morreu, se fez toda a transição democrática e umas duas revistas começaram a editar todo aquele material. Pode imaginar tudo o que foi produzido durante os quarenta anos de ditadura... o melhor do Moebius, do Bilal, do Toppi, do Pratt... chegar tudo de uma vez! Estas revistas eram jóias. Cada uma delas... Uma coisa incrível! Eu não conhecia.
Então este companheiro chegou um dia e disse: “não entendo, se você gosta de pintar e de escrever como é que não gosta dos quadrinhos?” “Mah, os quadrinhos...” “Não, não, leva as revistas e depois a gente fala”.
Efetivamente levei as revistas e fiquei deslumbrado. Não tanto por tudo aquilo que estava aí, que era já muito importante, mas por descobrir esta possibilidade de misturar as duas linguagens que eu mais gostava, a pintura e a literatura.
Foi muito rápido. Comecei que tinha, penso, uns vinte anos. Então fiz um pouco um plano de trabalho porque não sabia nada desta linguagem. Durante uns anos estive um pouco apreendendo e lendo todas as revistas e os autores que podia e vendo como funcionava. Depois de um ano fiz três histórias, em preto e branco, claro. Uma delas foi publicada num fanzine que fizemos na própria escola com dois amigos. As outras duas coloquei em uma pasta e levei para Barcelona, que é um pouco como São Paulo, aqui. Cheguei lá e o primeiro editor gostou e comprou as histórias. Uma foi publicada e a outra não. Esta foi a única história que fiz na minha vida que não foi publicada. A única que fica inédita e que agora já decidi não publicar mais porque se isto não aconteceu na época deve ser por algum motivo... Seria como uma violação publicá-la agora. Então vou deixar.
Assim foi, bem devagar, uma história, duas... Depois de um ano o editor sugeriu de fazer uma série longa e foi assim que comecei.

Na tua infância alguém em especial te incentivou?
Sim. Bom... é difícil de explicar. Em um certo senso sou autodidata. Não estudei numa escola de belas artes e os estudos de arquitetura não podem ser comparáveis pois são mais técnicos. Peró soi autodidacta de um jeito muito especial, porque meu pai foi um homem que amou sempre muito a arte. Não era comum naquela Espanha em que a classe média, que era a classe da minha família, tinha um acesso à cultura muito limitado. A cultura tinha um nível mui curto. Não era normal ir ver exposições de pintura.
Meu pai tinha uma grande biblioteca com muitos livros de arte. Gostou sempre de pintar, pintava nas tardes de domingo. Eu já desde pequeno tinha um afeto ao cheiro da trementina, ao andar com as pinturas... Tem também uma pequena coisa pessoal: no mesmo andar onde morava a minha família, no apartamento ao lado, vivia uma moça que era enferma de coração e não podia trabalhar. Eu ficava muito com ela que também gostava de desenhar... Passei toda minha infância rodeado de tudo isto e sentindo admiração pela arte. Sábado à tarde ia com o meu pai a visitar todas as galerias que tinha na cidade, a ver exposições, mesmo se não eram muito boas. A Espanha naquele momento era muito fechada e tinha muitas exposições de arte realista, acadêmica, mas assim eu me acostumei a uma relação direta. Falava de arte com meu pai que me perguntava: “gosta do cara? o que acha melhor?..” Esta formação foi muito importante.

O teu desenho varia muito de um álbum para o outro, passa da hachura densa de histórias mais velhas como ‘Stratos’ ao traço nitido e às luzes coloridas de histórias mais recentes. Esta ‘mutação’ de traço é atípica no mercado de quadrinhos...
De fato, o único problema que tive com os editores quando comecei a publicar foi que cada novo álbum tinha uma estética diferente. Os editores não gostam disto, querem um estilo identificável para prender o público. Além disto eu não produzia séries longas com um personagem fixo...
Na verdade antes de ‘Stratos’ já tinha realizado ‘A enciclopédia Delfica’, que ainda não foi publicado no Brasil e que é uma ficção científica mais limpa, realística e com uma estética mais “bonita”. Daí passei ao traço deformado de Stratos, que tem um desenho mais denso e mais preto. Depois fiz ‘Mundo Cão’, que foi já em cores e então troquei de editor, na Espanha, porque chegou uma hora que não tínhamos uma boa relação. Daí, tanto os editores espanhóis como os de fora começaram a aceitar que este era o meu jeito de fazer. Então consegui algo que para mim foi muito importante, conseguir chegar ao público sem um personagem e um estilo concreto e determinado, mas como um homem. Foi conseguindo um público que gostava de ver que o Prado tinha lançado um livro novo. Não importava que fosse diferente do anterior: “ah, tudo bem, é o Prado...” Podia gostar ou não gostar mas aceitava. Isto me permitiu seguir mudando os estilos e cambiando, coisas que eu realmente preciso.

As formas refinadas dos corpos e as cores em trabalhos como ‘Tangências’ lembram um pouco as obras de Klimt e Schiele...
Adoro Schiele! Conhecia o trabalho de Klimt e o que eu gosto daquela vanguarda austríaca era esta idéia mais estética, mais bonita que é o Klimt. Foi depois de ‘Mundo Cão’, em que já deformava as figuras, que descobri Egon Schiele, que dez anos atrás não era muito conhecido na Espanha. Então conheci o trabalho de Schiele que pra mim era o cara que tinha todas as soberbas... e fui buscar todo o material dele. O que tento deixar para cada livro, para cada história que é diferente, é o estilo gráfico que eu considero mais adequado, e achei que neste caso era o que mais se adaptava a ‘Tangências’, uma coletânea de contos que trata do encontro entre dois casais. Gosto muito do Schiele, muito mesmo.

Você foi influênciado também pelo trabalho de algum autor de quadrinhos?
De quadrinho é difícil, pois quando cheguei ao quadrinho já tinha uma formação gráfica muito grande, já tinha pintado muito passando por todos os ‘ismos’ possíveis: do hiperrealismo mais tolo, mais loco, até o abstrato mais radical. As influências que eu tive no quadrinho não foram tanto a nível de desenho, quanto para compreender o que podia fazer com aquela linguagem. Foi muito importante o Moebius, um cara que me parece desenhar com os anjos...
Sempre digo que entre os desenhistas - e uma coisa não tem mais ou menos mérito que a outra - saem os que depois de muita luta, de um trabalho forte, quase titânico de sofrimento com o desenho chegam a fazer coisas incríveis e os caras que não têm que trabalhar, têm quase um dom divino... Isso já se vê quando o cara pega o lápis e como este se move no papel... ele já vê o desenho, não precisa de esboço, está aí, ele pode mover a figura, desenhar tanto um cavalo como uma nave espacial. Este desenhador, porém, enfrenta um perigo muito grande, se ele não se controla pode perder a capacidade de comunicar e ficar somente em coisas bonitas, estéticas.
Eu admiro o Moebius porque vi que tinha esta facilidade, este dom, mas que sabia utilizá-lo, sabia conter, renunciar. Às vezes pode fazer um desenho muito mais bonito, mas ele não quer, o deixa assim, porque é assim que comunica melhor. Gostei muito do Moebius e gostei muito do Pratt, aprendi muito de el e do Sergio Toppi, cujo trabalho é menos convencional como quadrinho, mais ilustração, mas que chega a ser narrativo e a construir uma rara ação, utilizando o quadrinho de um jeito completamente pessoal.
Estas foram todas referências para mim, não pelo que diz respeito ao estilo gráfico mas por aprender como funciona um quadrinho, como se pode usar esta linguagem.
Na literatura também tenho muitas referências. Adoro o que se chamou o “realismo mágico”, especialmente o latino-americano: Borges, Cortazar, Bioy Casares, Garcia Marquez... adoro toda esta literatura. Por outro lado o que se chamou o grupo de Bradsbury: a Virginia Wolf, Marcel Proust, gente do princípio de século que tem uma narração muito demorada, introspectiva que talvez é quase o oposto do realismo mágico mas que eu sempre adorei também, por este contar pausado, devagar, que às vezes dá a sensação de que nada acontece e que é apenas um passo do tempo.

Parece-me que por alguns autores o desenho é um meio para dar forma ao mundo inconsciente. No teu processo de criação as imagens surgem como emoções ou são mais um reflexo do olhar?
É muito dificil, não sei como colocar em palavras. Muitas vezes fico trabalhando, se bobear à noite toda, pintando uma página o outra... aí deixo e vou deitar. Na manhã seguinte vejo o trabalho como uma coisa alheia, como se não fosse minha... é difícil de explicar, eu sei que é minha mas... é como se o mérito não fosse meu. É como se alguém tivesse me dado um presente, como se tivesse chegado uma criança, um tio ou uma mocinha: “isto é para você” e o presente é um desenho...
E o pior é que eu gosto do meu próprio trabalho. Vejo e digo “ah, é legal!”. Isto é terrível, sério! Nem sempre acontece, claro, muitas vezes vejo e não gosto, rompo e refaço, mas realmente a sensação que tenho é que sou quase como um tradutor.

Em entrevista à Graffiti, José Munhoz colocou o desenhista como “um olho que pensa”...
Certamente, eu tenho consciência do que quero contar, é o que penso do mundo, a minha relação com as pessoas... Isto é meu. Quando escrevo sinto que é realmente trabalho. Escrevo, volto a escrever, apago... Mas quando começo a desenhar e a pintar não, é uma coisa muito mais intuitiva e chega um momento em que é como se uma porta se abrisse e já não penso, as coisas fluem seguidas. Suponho que seja assim, mas descofio também das interpretações muito mágicas, tenho medo de perder-me num mundo que não controlo. No fundo temos toda uma série de formas aprendidas, o que vemos, que escutamos e que sentimos. Então é um pouco como quando falamos: se alguém deixa de utilizar uma língua durante muito tempo perde a capacidade de falá-la rapidamente. Tem uma idéia, sabe o que quer dizer, mas anda buscando porque não acha a palavra justa... No entanto depois que chego a expressar dois conceitos parece mais fácil e tudo volta a se ligar. Acho que é algo assim quando trabalho, porém eu não tenho consciência de como tudo isso funciona.
Também não gosto de saber como faço, penso que quando uma pessoa começa a conhecer as mecânicas de como realiza as coisas corre o perigo de arrematá-las.

20 dezembro 2011

"Nunca falei não, eu falo agora, agora eu falo"

da graffiti 6, de 1999
 
A noite começou quando o Pablo chegou na casa do Rafael, depois do trabalho. Algumas conversas animadas e a expectativa da entrevista no dia seguinte, uma fumaça. Repassaram algumas questões que deveriam ser colocadas. As passagens compradas, ainda restava algum tempo até a partida. Foram tomar uma cerveja no Antoniu´s, pra fazer hora e embalar o sono no caminho. Eram umas nove horas quando o Kaká, historiador e contador de casos exagerados, chegou e se juntou a eles no balcão espremido. A animação de ir ao Rio de Janeiro e encontrar o Grande Bruxo foi contagiante. Os dois convenceram o Kaká de desistir o fim de semana por aqui e ir pro Rio também. Ele deu um telefonema e descolou um lugar pra ficar. A cerveijinha acabou de convencer. 
Venderam as passagens e só então foram arrumar as mochilas. Ainda encontraram dois amigos e passaram na casa da Prima. Era meia-noite e os três, dentro do velho Chevette, partiram para o Rio. Às seis da manhã eles chegaram em Copacabana e a noite acabou. No dia seguinte, após uma outra conversa, também animada, na casa do amigo Luís Carlos, partiram novamente com destino a Jabour, bairro do Bangu, zona norte do Rio, onde mora, recatado, Hermeto Pascoal. Erraram o caminho e gastaram uma hora e meia até chegar à casa, mas acharam. Um pouco tímidos, bateram à porta. Diante dos três mineiros, surgia a figura única de Hermeto Pascoal, com seus cabelos alvos e sua aura de duende. Os olhos apertados e o sorriso largo no rosto cativaram todos. Daí pra frente foi só alegria. Hermeto diz tudo e a conversa (entrevista jamais) foi franca, direta e interessante. A lucidez deste nordestino, músico universal, impressiona. Os três quase não abriram a boca, comovidos com as palavras, os gestos, a generosidade e a sinceridade de Hermeto. Os trechos da conversa estão aí pra quem se interessar, do jeito que ele falou, com a lógica de Músico porque “pra tudo tem uma lógica”.

Lá em Lagoa da Canoa eles me chamam de Sinhô, Sinhô do Pascoal e da Divina, que são meus pais. Da minha geração, ninguém consegue me chamar Hermeto. “Ô Hermeto, me desculpe, mas é Sinhô mesmo, só sei lhe chamar de Sinhô”. Nasci em Lagoa da Canoa. Eu nasci num bairro, que hoje é bairro, fizeram mais uma casa, então é bairro. Chama Olho d’Água da Canoa, mas como me criei em Lagoa da Canoa, e até a documentação toda é de Lagoa da Canoa, então eu sou de Lagoa da Canoa. Lá tem uma lagoa muito grande. Inclusive, como o lugar era pequeno, a lagoa era maior que o lugar a bem dizer de tão pequenininho que era o lugar, é pequeno mesmo. Lá era um povoado. Fica no Estado de Alagoas, perto de Arapiraca. É por isso que tem o nome de Lagoa da Canoa em vez de chamar Canoa da Lagoa, chamava Lagoa da Canoa por causa da lagoa. Agora não, agora é cidade. Eu fui para lá há uns cinco anos ou mais, fui para a emancipação. Eles fizeram uma festa, eu reconhecia todas as pessoas do meu tempo, até o homem que vendia queijo. Vi todo mundo e eles ficaram admirados, e todo mundo me chamando de Sinhô. Hermeto não existe. Quando eles me chamavam de Sinhô, eu olhava a fisionomia das pessoas e reconhecia todo mundo. Fiz um show lá no meio da rua, na rua da feira, onde eu tocava. Meus primos lá tinham um caminhão, abriram a carroceria, nós fizemos como se fosse um palco e fizemos um som lá. Tenho muita gente lá, primos, pai e mãe não, pai e mãe estão no céu, família, sim, primos. Comecei a fazer música justamente em Lagoa da Canoa.
Eu sempre digo que a minha idade de músico é a minha idade cronológica também. A minha música começou no meu cordão umbilical. Foi quando eu nasci, o meu primeiro som foi esse, considero esse. Quando eu fiz 60 anos, fizeram uma festinha para mim e queriam saber quantos anos de música eu tinha. Eu falei: "60 anos". Na época eu ia fazer 60 anos, hoje tenho 63, que são 63 anos de música. Não abro mão do dia que eu nasci, não abro mão de ser o primeiro dia de música. Não de teoria, que muita gente fala que teoria é música. Teoria não, música é música e teoria é teoria. A teoria é uma coisa e música é outra coisa. A teoria musical eu vim aprender depois de meus 35 anos de idade, aprendendo com a vida, sem escola sem nada. Nunca estudei com nenhum professor. Infelizmente, porque isto me tomou muito tempo, aprendo as coisas com deduções, porque Deus fez o mundo bem feito, tem uma lógica para tudo. Não tem esse papo de "isso não tem lógica". Quando não tem lógica é porque não existe. Outros confundem lógica com padrão. Tá errado! Padronizar as coisas não tem nada a ver com lógica.
Eu comecei assim a minha carreira de música: Eu comecei a tocar no mato tudo que tinha de coisa porque na minha terra não tinha luz elétrica. Então a gente inventava. Eu inventava muito. Foi bom que desenvolvi esse lado, você vê essas coisa que eu faço hoje em dia com percussão, toco com tudo, eu já tocava quando era criança. Brincadeira de criança que a gente chama. Então, o quê que aconteceu? Eu ia pro mato, meu pai me levava pra roça. Eu ficava debaixo das árvores, por causa que eu sou albino e me queimo muito no sol. Aí, botava o carro de boi na árvore, ficava em cima do carro de boi e ele ia buscar ração para os bois. E ele dizia: "Não saia daí de cima". Por causa do sol. Aí eu corria quando ele saia e arrancava um canudo de mamona, aquelas de mamoeiro. Pegava a mamona fazia flautinha, fazia uns negócio, pra tocar, brincar. Coisa de criança. Mas acontece que eu já tinha mesmo musicalidade. Tanto, que os Passarinhos, eles vinham, onde eu tava tocando, eles vinham. Eu sabia chamar os Passarinhos com o som. Aí, passei a tocar flautinha no mesmo lugar. Então quando, era naquela Árvore que meu pai sempre ficava lá, eu chegava debaixo da Árvore que eu tocava, dava uma nota na flautinha. Meu pai chegava e dizia: "Meu filho, quanto passarinho". "Pois é, a Música", eu dizia. Isso com sete, oito anos de idade, pequinininho, né? Aí foi que eu comecei a tocar mesmo. Meus instrumentos do mato.
Lá no Norte, tem um ditado que diz "eu me entendi de gente". Entendi de gente é quando a gente tá grande já, sabendo. Você começa a analisar suas coisas de criança. Foi quando eu comecei a ver esse lado todo, o lado dos animais, que eu conversava com os animais, naturalmente. Eles entendiam tudo, a gente se entendia. Eles me entendiam porque eu via a ação deles, depois que a gente conversava. Eu ia no meu Cavalo, (eu tinha meu Cavalo pra eu andar porque como eu não enxergava bem, meu pai me dava um que ele sabia que o Cavalo não ia vê uma Égua, não ia sair atrás da Égua, correndo, pra não desembestar. Só que meu pai não sabia que eu gostava desses Cavalo Doido. Ele não queria, mas eu pegava escondido. Depois de grande foi que eu vi que ele tinha cuidado certo comigo) e eu conversava com ele. Eu batia assim nele. Ele andando, eu batendo nele assim e conversando com ele: "É, já tá pertinho, né? Tamo chegando". Dizia pra ele tudo direitinho, o Cavalo fazia com a orelha. Eu sabia os sinais. Por exemplo: Quando o Cavalo via uma visage. O quê que é uma visage? É uma visão, uma coisa espiritual, uma energia. Que o animal é muito sensível. A gente põe eles no lugar errado, acha que o animal não tem espírito. É conversa fiada. O espírito deles é tão elevado quanto o nosso. As religiões não admitem isso. São Burros! não aprenderam com a vida. (Não é domar não. Não é como eles fazem no circo, isso aí tinha que ser proibido. O Elefante andando num cabo de coisa, mostra que é inteligente, claro. Tem muita gente dizendo por aí que é inteligente, que é racional, e que não vai se equilibrar num cabo de coisa. Mas o coitado, o que ele apanhou para fazer aquilo ali. Não precisava). Os Sapos... Os Sapos são gênios! São gênios, escondidos, excluídos por nós. Os sapos já dão a aula do que é orquestração natural. Eles são gênios, os Sapos, os Pássaros. Deus botou os animais como o espelho verdadeiro da vida. (Nós exageramos mais do que os animais, estamos mais nus hoje em dia do que os animais, na televisão em cima dois tapetes, então você vê que está... Não sei não nós estamos tomando o lugar deles. Por isso que não precisava trazer os animais pra cá, pro centro da cidade). Isso pra responder a pergunta do instrumento E O PORCO PAROU DE COMER
O Porco. Eu estou misturando tudo pra você ver. O Porco é tido como rude, talvez o animal mais rude que tem. Mas é aquele negócio, você tem que ver onde está a coisa. Se nós somos mais inteligentes, então temos a obrigação de entender mais do que eles a gente. Aí que vem a história. Quando criança, eu já sentia isso ao tal ponto de saber o quê que o Porco gostava mais. Então pegava, às vezes, um instrumento grande, porque tem aqueles Porcos grandes. Barranco, que a gente chamava. Não, ele não queria não. Ele queria justamente um instrumento médio. Eu pegava um talo de abóbora. (Você pega corta, você arranca um talo, tira as folhinhas todas e não deixa furar não, porque você vai ter de rachar no meinho com uma faquinha, com cuidado, aquele talo de abóbora , racha ele assim e sopra como se fosse aquelas gaitas escocesas, empurra no céu da boca, que fica aquele som assim, de céu da boca, como gaita escocesa). O Porco, você toca aquilo ali ele pára, ele não vem atrás, porque realmente ele é muito nervoso. (O estresse acho que tá mais no Porco. É por isso que quem come muita carne de Porco, passa um puta estresse. O Porco é um bicho que já nasceu assim, estressado). Então, eu já vi essa coisa tudo quando eu era criança. Quando eu tocava, eu queria ver: "Todos gostam de som, porque esse Porco desgraçado não gosta?". Eu deixava primeiro meus tios saírem, porque eles não queriam, achavam que eu ia mexer com os bichos. Quando eles saiam: OHHH!!!!. Os-Bichos-Paravam-de-Comer! Ele fazia assim: (botava aqueles focinhos cheio de .. a gente dava muito, pra eles, resto de comida, feijão com farinha. Então eles botavam aqueles focinho assim, cheio de feijão com farinha) "Que coisa é essa? Quê isso que cê tá fazendo aí?" Você sentia a felicidade dele. O Porco parar de comer? Ele dava com o rabinho pro lado assim. Você empurra ele, é a única hora que ele não corre. Você passa perto dele e ele não sai, ele se contorce assim e não larga a comida. Com o instrumento, que tem um som parecido com saxofone, puríssimo, ele parava. Hoje em dia, eu posso fazer com sax soprano, pode pegar um sax soprano e ir lá pro Porco e o Porco vai delirar com você. Daí fui que eu fui vendo os instrumentos. No mato era eu, era eu com os Passarinhos. Até hoje eu vou pra qualquer lugar e chamo Passarinho. Isso porque eu fui criado assim, sem luz, sem nada. Na feira escutava alguma coisa que chegava na época, do Luiz Gonzaga. Chegava naqueles microfones lá que tinha... você pagava um cruzado pra rodar uma vez, pra escutar. Nunca paguei porque os outros ficavam escutando e eu ficava perto, do lado.Bom, daí foi que veio a idéia do meu pai. Meu pai tocava, era músico também, tocava oito baixos. Minha família toda tocava, tocava oito baixos. Meu pai ia trabalhar, deixava o harmônico dele debaixo da cama. Meu pai era agricultor, ele não gostava de ver o sol nascer em casa. Ficava o dia todo, só voltava às seis da tarde. Então pegava na sanfoninha dele. Não era profissional nem nada. Bom, um belo dia, a mamãe escuta, entre dez e meia e onze horas, (lá o relógio de lá, na época, era na pedra, batia na pedra pra poder você saber a hora. Nem todo mundo tinha um relógio. Quem tinha um relógio, ave Maria, era o rei. Não é que não tinha dinheiro. Tinha dinheiro, mas não tinha relógio. Comprar onde? Geladeira? Não tinha luz). Aí, minha mãe começou a escutar aquele som e tal, foi correndo, mas: "Ué? O Pascoal já chegou?" Quando ela chegou lá na porta, olhou pela brechinha e estava lá eu tocando. Eu falo isso, foi eu e meu irmão. Aconteceu a mesma coisa com o meu irmão, que faleceu. O Zé Melo, pianista. Eu vou falar eu porque sou só eu mesmo. Ai minha mãe escutou e ficou emocionada, ficou emocionada. Esperou papai chegar, ele chegou às 6 horas, que era mais ou menos a hora que ele chegava, a hora que o sol ia se pondo. Aí ela: “Pascoal, tenho uma notícia para te dar. Você vai vir amanhã, agora você venha, porque e estou escutando um som aqui mas não sabia de onde vinha. Eu pensava que era você, mas não vou nem te falar o que é. Você venha amanhã 11 horas, depois você volta para roça se quiser. Mas venha de caladinho, de ponta de pé”. Aí papai foi embora, normalmente. Eu lá fui pro harmônico tocar. Aproveitava, escondido dele. Aah, Bicho!! Quando ele chegou da roça e me viu tocando... É a alegria, né? Já tocando e começando a tocar bem, aí ele chegou para minha mãe e disse assim : "Deixa ele parar de tocar". Aí eles esperaram eu parar de tocar, que já estava na hora. Minha mãe disse: “Meu filho, tá na hora de comer, hora do almoço”. Aí, quando eu cheguei, meu pai estava lá. ”O senhor aqui agora?” Isso quem estava falando era menino de sete para oito anos no máximo. Ele disse: “Eu escutei uma pessoa tocando aí”. Eu já fiquei com medo, achando que ele ia...“Não, não meu filho não fique não, você vai agora é tocar, papai vai comprar um para você, eu vou vender aí uma vaca, um boi, para comprar um bonito para você. Esse é o meu, mas você vai ter o seu, pronto". Aí comprou um harmônico com oito baixos. Quando foi com um mês, dois, ele já queria parar de tocar. Ele já estava com vergonha, eu e meu irmão, piquinininhos, tocando mais do que ele.

Acabou a gente indo tocar para fazer baile, ganhando dinheiro para fazer baile e papai sendo o nosso empresário. Eu fui pro Recife, a gente formou este trio chamado O Mundo Pegando Fogo, com o Sivuca. Foi uma vez que a gente tocou. E eu continuei tocando minha sanfona, tocando oito baixos. Mas, em Recife, passei a tocar sanfona. O dono da rádio comprou uma sanfona pra gente, para mim e outra pro meu irmão. Aí nós ficamos tocando, tocando. Tocamos um tempo, aí nós nos separamos, foi um para cada lado. Um foi para Garanhuns, o outro para Caruaru. Fui pra Caruaru porque o dono da rádio achava que a gente não ia dar para isso. Me mandou para Caruaru porque eu não dava para a música e mandou meu irmão para Garanhuns porque ele não dava para a música. Nós dois. Só pra cumprir o contrato, que a gente tinha um contrato. Eu tinha 14 anos, meu irmão tinha 15. Então eu fui pra Caruaru. Depois, com um ano e pouco, o Sivuca, que era sanfoneiro de lá do Rádio Jornal do Commercio, foi lá passear e eu estava tocando. Ele me escutou no rádio e disse: "Quem é esse sanfoneiro aí? ele está dando uns acordes modernos, tronchos". Aí o gerente da rádio, o Seu Luís Torres, disse "É aquele galego que me mandaram para cá de Recife, pra terminar o contrato, que disseram que não dava para músico, o outro também, foi para Garanhuns". Aí o Sivuca: "Aah! É o Hermeto e o Zé Neto. Pois meu senhor, esse menino aí, você faz assim, você dá ... Quanto é que ele ganha por mês?". "Tá ganhando 500 contos". "Se você não passar pra mil logo, você vai perder o menino". Aí a rádio chegou e aumentou logo a metade do meu salário. Aumentou e eu já estava com meu nome assim "O Maior Sanfoneiro do Agreste". Essa coisa que o Sivuca falou, eu nunca falei não. Nem lá. Nunca falei nem ninguém falou. Nunca falei não, eu falo agora, agora eu falo. Voltei pra Rádio Jornal do Commercio, a mesma rádio que me mandou pra Caruaru, só pra terminar como refugo. O meu irmão ficou com raiva e não quis voltar não. Luís Gonzaga deu uma oportunidade pra ele ir pra São Paulo. Ele foi e eu fiquei no Recife. Mas, na minha cabeça, era só mostrar pra esse cara, sem raiva dele, que ele me fez um bem, não me fez um mal. Ele se arriscou, ele podia ter feito um mal se eu fosse em cara que não tivesse a força que eu tenho. Eu poderia ter me dado mal, ter ficado desgostoso. Escutar um negócio desse com 14 anos de idade... Daí continuei tocando minha sanfona, ganhando três vezes mais do que eu queria. Fiquei mais uns três anos na rádio. Depois fui convidado pra ir pra João Pessoa, tocar piano e acordeon lá no regional. Mas eu não tocava bem piano, piano eu estava tateando. A primeira vez que eu toquei piano foi com o Heraldo do Monte, mas não continuei no piano, continuei na sanfona. Vim me embora pra São Paulo, Rio de Janeiro pra tocar sanfona. Toquei aqui na Rádio Mauá, foi meu primeiro emprego no Rio.Com as Gravadoras, eu já rompi há muitos anos, já comecei rompendo. O primeiro contrato que eu fui assinar era na Continental, com um produtor de disco e os produtores eram donos dos músicos. Quando eu fui convidado pra gravar, pra mim era uma grande chance, uma oportunidade de gravar, as minhas músicas todas debaixo do dedo para tocar. Quando eu chego lá, tava lá uma lista, um papel com um monte de nome de música. Aí ele pediu para eu sentar e começou a ler e disse: "E agora? Está bom essas músicas aqui?" Eu digo: "Pra que?" "Já escolhi as músicas pra você gravar". "As minhas músicas, o senhor me desculpe, mas, modéstia parte, quem escolhe sou eu. Isso aí que o senhor me falou, não são músicas, são letras. Tá muito ruim, quadrado. Isso aí eu toco na noite algumas vezes, uma ou duas dessas". "Mas menino!!" E eu estava na faixa dos 20 e poucos anos. "Mas menino!! Você vai perder uma chance dessas de gravar na Continental?" Eu digo: "Porque eu vou gravar? Porque eu sou bom músico ou não?" "É, mas você tem que escolher música conhecida". Eu disse: "Mas eu quero ficar conhecido, se eu tocar música conhecida eu não vou ficar conhecido. Eu quero que as minhas músicas também fiquem conhecidas e que eu fique conhecido através das minhas músicas. Se for assim eu gravo, se não for assim, eu quero lhe agradecer, desculpa, mas eu não quero gravar nunca, não é só hoje não. Não quero que ninguém me convide, pode avisar para todos seus amigos empresários, diretores, que eu não quero gravar nunca a não ser as minhas músicas e como eu quero tocar. Não abro mão do jeito que eu quero gravar. Quem me chamar para gravar com alguém, tem que ser como eu quero tocar. Não estou precisando de nada, não quero nada". Todo mundo sabe que o músico é o mais duro, quem não é? Eu era um deles, um dos mais duros. Quanto melhor, mais duro. Essa é a realidade. Qualquer músico aí que faz essas merda aí, ganha mais do que nós. Qualquer jornalista contratado de gravadora ganha muito mais do que vocês. E vai ganhar sempre. Se você quiser ganhar você também vira a casaca. Nós temos o orgulho de dizer que nós fugimos do dinheiro. Não é porque não queremos, nós sabemos como ganhar, mas não queremos ganhar assim. Feliz, qual é o rico feliz? Eu não quero nunca que o meu valor seja pela minha riqueza material, quero que o meu valor seja pela minha riqueza de Notas Musicais. Que seja pela minha riqueza da Alma, do que eu faço, do que eu sei fazer. Então, a minha riqueza é essa. A riqueza mais linda do mundo é aquela que você leva com você para onde você vai, ou na terra ou no céu, que é a riqueza do Dom. Daquilo que Deus dá para você abraçar para você fazer fielmente aquilo. Essa é a riqueza. As nossas religiões são os nossos trabalhos. É o que nós viemos para fazer. O Negócio é tudo Vaidade. Quando fui aprender teoria, um grande amigo meu, o maestro José Gomes, lá de Caruaru, ele disse: "Vou levar você lá para estudar música". Eu tinha 16 anos. Ele me levou para estudar música, com o professor chamado Mestre Laranjeiras, era violinista. E eu fui, com aquela vontade de aprender. (Eles diziam aprender música e música não se aprende, se aprende é teoria musical. A música você já nasce com ela, tem o dom musical. Aprender teoria qualquer um aprende, não precisa ser músico, nem ter aptidão musical, nem nada. Qualquer um pode tocar um instrumento, é só aprender teoricamente. Mesmo quem não tenha o dom musical toca um instrumento. Pode tocar mal, pode até tocar muito bem e ser um grande técnico. Tem grandes músicos que tocam aí muito bem e que se tirar o instrumento da cabeça deles é como tirar os óculos dos olhos. Esse não é músico, é um teórico). Quando cheguei lá, o cara me viu e falou: “Esse não dá, esse não enxerga não, como é que eu vou ensinar para ele?”. Já fiquei com raiva dele. Aí eu pedi para o meu amigo José Gomes comprar para mim um livro de música. E o Zé Gomes disse: “Mas você não enxerga, Hermeto, como é que você vai ler?” Eu disse: “Eu vou ler, Bicho, pode comprar que eu vou ler de qualquer jeito. Vou botar o nariz em cima, eu vou ler, eu quero mostrar para esse cara. Aí o cara chegou e comprou o livro lá. Eu me lembro que o livro se chamava Alencar Terra, um livro de um acordeonista, se não me engano, era italiano. Naquele tempo era cheio de acordeonista, todo mundo tocava. Quando eu peguei no livro e vi as manchetes, aquelas letras grandes, estava escrito assim: “Primeira lição: Breve. A breve vale oito tempos”. Breve, que diabo é breve? Mas eu não sabia o que queria dizer tempo. “Semi-breve vale quatro tempos”. (Como tinha um cara lá na minha terra que via esse negócio de tempo, de chuvada, ele botava um aparelho no quintal dele para dizer se ia chover ou não. Eu já fiquei em tempo de falar em chuva. Te juro, é inocência, né?) Aí eu olhei, tinha a figura. Quatro tempos, mas tinha uma bola, aquela bola branca, quatro tempos. Depois, lá na frente, eu vi escrito “Mínima”. “A mínima vale dois tempos”. Tinha uma bola branca e tinha uma hastezinha. “Vale quatro tempos”. Aí eu já fui deduzindo. Como eu tinha estudado, eu tinha dezesseis anos, eu já tinha feito o terceiro ano e também não estudei mais, que seria, hoje, o terceiro ano ginasial. Meu amigo, quando eu li aquilo ali que eu vi o que era dois tempos. Aí eu vi o segundo, era aquela C mínima pretinha. Tava lá, “Um tempo”. Aí outra, eu digo: “Ah, então já aprendi”. Quando eu olhei pra frente assim, vi os desenhos tudo direitinho. Aí daquilo ali, eu comecei a deduzir e escrever. O tempo eu já sabia que era ritmo. Quer dizer, quando eu tocava no regional, os caras já diziam: “Toca no ritmo, menino”. É a mesma coisa que dizer assim: “Toca no tempo”. Eu deduzi. Aí que eu vi que não valia a pena continuar muito na teoria, agora porque a teoria ia me atrapalhar. Eu deixei completamente pra lá a teoria. Na hora de vim me embora pro sul sem saber nada, eu sabia só isso que eu tinha visto. Depois eu retomei, depois que eu já tocava bem os instrumentos, que a teoria não me atrapalhasse nada, para eu usar a teoria, pra me acrescentar. Quando eu tinha meus 50 anos, eu falei com a minha esposa que estava um pouco preocupado porque estava todo mundo achando que eu não sabia o que eu sei. Todo mundo tinha alguém que ensinou e eu já estava cansado de dar desculpas porque estava consciente que não. Eu também gostaria de ter um professor Aí chegou na minha cabeça de que eu estava órfão. Eu era um órfão, comparando com aqueles caras que ficam procurando pai e mãe e eles não sabem quem foi o pai e a mãe. Eu não tenho pai musical. Aí aquele negócio da minha imaginaçao que me acompanha a vida toda. Eu passei a acreditar cada vez mais e lancei um disco chamado Lagoa da Canoa, que eu botei na capa assim: O meu professor é o meu dom. E o nome do meu dom, claro, todo mundo tá vendo que é Deus. Eu aprendi com a vida. Eu ficava nervoso mesmo. Como é que eu vou provar pra esses caras que eu escrevo pra sinfônica, pra qualquer tipo de instrumentação e ninguém me ensinou nada? E até hoje eu fico pensando. Agora eles me aceitam porque eles tentaram me desafiar e não conseguiram. Porque eu vou com os arranjos pra eles tocarem e eles não tocam e eu gravo lá fora. Lá fora, a concepção é outra. Ninguém quer saber quem é autodidata, se é autodidata tem mais valor. O autodidata é o verdadeiro músico.
Meu discos estào sendo pirateados pelas Gravadoras. As minhas Gravadoras lançam os meus discos e não me dão satisfação. Digo isso porque provo. Nenhuma delas tem um recibo assinado por mim lá, deles pedindo uma autorização para lançar meus discos. Eu sei que as músicas são deles, mas para todos discos eu tenho direito autoral. Eles recebem de novo e porque que eu não recebo? Eu já falei: PIRATEIEM MEUS DISCOS. Comprem meus discos aí e doem para os amigos. Se quiser comprar, venda também. Agora, baratinho. Não sacaneie os caras. E vão botando o Hermeto pra tocar. Eu quero é tocar, não toco em lugar nenhum. Não toco em rádio, pirateiem, vendam. Quem está dizendo sou eu. Meus discos todinhos. Esse novo não. Esse está saindo agora, é um disco que não foi feito pensando em nada. A Gravadora é a Rádio Mec. A Mec é uma rádio pobre também porque é do governo, é pobre. Nós queremos a cultura. Mas se eles não tocarem, vende, vende também. Se não tiver o disco, eu dou essa porra também. Eu quero é isso. Pirateiem os discos do Hermeto, estou mandando piratear, eu assumo. A Gravadora não pode dizer nada porque me deve. Todas são Ladras, estão me roubando e vão me roubar até eu morrer. Não estou com raiva não, não vou ter tempo pra ficar com raiva disso. Eu não gosto de dinheiro, eles gostam, tanto que eles fazem isso. Agora eu estou falando em nome de muita gente aí que está calado e não diz nada. Eu nunca recebi mil reais no Brasil, já assinei 70 recibos no Ecad de Brasília e nunca foi mil reais. Da editora na França eu recebi seis mil reais da primeira vez. Aqui, a Rádio Mec fez cinco mil discos, mas não tem distribuição. Se tivesse distribuição, vendia. Eles falam, anunciam na rádio dizendo: “Nas boas lojas”. Que boa nada, tem que vender em qualquer lugar, vendeu, é boa. Mas estou contente porque o trabalho está bonito.

DE PANDEIRISTA PRA PANDEIRISTA
Quando eu conheci o Jakson do Pandeiro, ele não tinha o nome que ele tinha como cantor, nem ele nem a Almira Castilho, eles não eram conhecidos ainda, depois sim. Ele ficou conhecido depois que ele conheceu a Almira Castilho. Mas o Jakson do Pandeiro, na Rádio Jornal do Commercio, era panderista. Ele não era cantor. Depois ele passou a ser o cantor. Quando ele veio pro Rio, ele já veio cantando, ele já era sucesso em Recife. Mas quando eu cheguei lá, que eu cheguei com 14 anos, não. Agora eu falo algumas passagens da minha carreira com o Jakson que muita gente não sabia. E tem muita gente aí que não está acreditando porque esse tempo todo eu não falei. Mas a minha consciência é que fala. Eu não falo pelos outros, eu falo por mim. Eu tocava muito bem o pandeiro. E o Jakson do Pandeiro já estava começando a sair, a largar o pandeiro devagar pra ficar só cantando. E tinha um programa na Rádio Jornal do Commercio que chama-se Felicidade Bate à Sua Porta, que era feito nas ruas. E o Jakson achando eu muito musical, ele vendo o meu futuro, o que aconteceu? Na hora de eu tocar com ele, ele veio embora pro Rio, não peguei a fase áurea do Jackson porque ele veio embora. O Jackson chegou pra mim e disse: "Hermeto", ele não me chamava de Hermeto, me chamava de Sivuquinha, mas ele me chamou de Hesmeto porque Hermeto ele não conseguia. "Hesmeto, se você ficar nesse negócio de tocar pandeiro, você não vai pra frente não. Não vê eu, estou começando a cantar, não vou ficar no pandeiro toda hora não". Eles me escalavam no pandeiro. Invés de colocar assim "Hermeto Pascoal e seu Acordeon", que eu não tocava nada mesmo, eles botavam "Sivuquinha e seu Pandeiro". Aí eu fui lá falar com o gerente e eu garotinho de 14 anos: "Ó eu não vou tocar pandeiro não, o senhor não me leva a mal, mas o meu coontrato aqui é pra tocar sanfona". Falei assim mesmo. Ele disse: "Mas você não toca nada ainda, você está aprendendo". Eu disse: "Se eu for tocar pandeiro eu não vou aprender a tocar sanfona". Ele me achou muito malcriado e me deu 15 dias de suspensão. Eu disse: "Minha terra é longe daqui, o senhor me dê 30 dias pra dar tempo eu ir na minha terra e descansar um pouco. Aí ele me mandou pra Caruaru e meu irmão pra Garanhuns. Você vê que o Jackson teve a ver com isso.

ALBINO LOUCO ACERTA TROMPETISTA
O meu encontro com Miles Davis lá, quando eu fui lá pela primeira vez, convidado pelo Airto Moreira e a Flora Purim. Fui fazer um trabalho de compositor, de instrumentista e de arranjador. Eu fui fazer com o maior prazer, fui mostrar o meu trabalho. Já estava bastante conhecido no Brasil quando eu fui. O Airto tinha me dito que ele era um cara chato, que, se ele não gostasse da pessoa, ele mandava a pessoa se retirar. O Airto tinha medo dele. Quando eu fui no show dele, ele chegou rápido e começou a tocar. Aquele jeitão dele, meio carrancudo. Eu não conhecia ele. Por causa da minha vista, eu não gravo fisionomia de homem ,não. Então eu não lembrava como ele era. Aí chegou aquele cara perto de mim e falou umas coisas, veio falando comigo, meio rouco. E eu não falo inglês, até hoje não falo. Aí eu já tinha dito pro Airto ou pra Flora, pra quando eles vissem alguém falando comigo, que eles me viessem me socorrer pra eu não ficar nervoso. Aí veio o Airto correndo, mas ele veio assustado e disse: "Você sabe quem está aí, é o Miles", como quem diz "Pô, que milagre o cara vir conversando com você sem lhe conhecer, sem nada". Aí eu falei que conhecia muito a música dele, que eu admirava o trabalho dele, aqueles papos, né? Aí ele falou pro Airto que queria conhecer a minha música. Não é qualquer um, você tem que acreditar em alguma energia celestial. Isso foi antes de começar o show. Eu acredito nisso, senti um vibração bonita dele. Aí ele fez o show dele, eu assisti o show, depois eu fui em um, dois, três shows. A música dele eu não achava boa naquela época, aquela música que ele fazia, aquele rock. E ele sentia em mim isso, ele sentia que eu estava fazendo aquilo lá que ele gostaria de estar fazendo. E eu senti nele isso. Isso com a alma, com o coração, com tudo. Aí eu fui fazer o meu trabalho e deixei pra lá. Mas ele aí me ligou e disse que queria me ver de qualquer maneira. Aí lá vem o Airto com medo de me levar e chegar lá e ele não querer me receber. Eu disse: "Airto, deixa, o que eu estou sentindo aqui e diferente do que você está sentindo. Você quer passar pra mim uma coisa ruim? Você quer que eu fique com raiva do cara? Ou você está com raiva dele?". Quando eu cheguei lá e tal, levei um violão, ele se sentou, toquei um monte de música, cantando e solando as minhas músicas. Quando acabei de tocar ele chegou e disse: "Que pena, que eu não posso gravar todas as suas músicas!". Aí eu falei: "Mas como você sabe que eu quero te dar todas pra gravar, eu vim também pra gravar aqui. Eu vou escolher as que eu quero te dar". A partir daquele dia houve aquela simpatia geral. Ele já me apelidou logo e disse: "Você é um Albino Louco", começou a me tratar de Albino Louco. Ao ponto de eu ir pra casa dele e a gente ia lutar boxe. Uma vez eu dei uma porrada nele, errei e dei uma porrada nele. Uma vez eu dei uma entrevista na Rádio França, de uma hora em meia, e o repórter me perguntou: "Hermeto, você está disposto a responder uma pergunta que vai ser chata pra você?". Eu disse: "É ruim ou é boa?". Ele disse: "É boa". "É pelo seguinte, o Miles Davis esteve aqui dando uma entrevista pra mim e eu perguntei pra ele se, quando ele morresse, ele gostaria de ser músico? Aí ele falou que gostaria de ser Um Músico que nem o Hermeto Pascoal". Isso, agora eu que estou falando, se eu, Hermeto, não tivesse o nome que eu tenho, ia parecer chato, mas não fica porque é a minha consciência que diz. Quando eu soube disso aí, eu disse pro cara também: "Se eu morresse eu gostaria de ser um músico como ele". Mas, pelo jeito que ele falou, ele deu a entender que ele gostaria de ser melhor do que ele foi, que teria que ser como o Hermeto. Aí me encabulou muito. O Gil Evans foi receber um prêmio lá em Nova York de melhor arranjador. Eu tenho sorte pra essas coisas. Eu estava fazendo uma temporada com a Flora Purim, o Airto Moreira e o Opa Trio, em Nova York. Aí chegou um pessoal da imprensa lá pra dar um prêmio pro Gil Evans. Um amigo me falou que o Gil Evans estava querendo falar comigo. Eu fui lá. Aí me apresentaram pra um monte de gente lá, tudo em inglês, eu não entendi nada. Depois o meu amigo falou: "Você sabe pra que você foi lá? Os caras estavam apresentando um prêmio como melhor arranjador do mundo e ele apresentou você como o melhor arranjador do mundo". Eu disse: "Rapaz, estou assustado, se eu soubesse eu não teria ido não porque eu não acho". E ele apresentou lá pro pessoal. São coisas que o Brasil não sabe. Se eu tivesse feito um gol num jogo de futebol todo mundo sabia. Mas só por isso eu vou deixar de fazer o que eu gosto? Não. Eu-Sou-Consciente-Porque-Eu-Saio-De-Mim. Eu, pra saber o que eu sou, eu tenho que sair de mim. Eu não posso ficar em mim. Saio de mim como? Eu me transporto pra cima do morro, pra cima de uma casa, pra cima de um poste, pras nuvens, pra olhar pra mim, pra olhar pro Hermeto. Quando falo em mim eu estou falando no Hermeto. Mim, que eu falo sou eu, o corpo, o Hermeto é o Hermeto, é o espírito do Hermeto, tem vários momentos na terra e vai ter muitos como nós todos. Ninguém sente que eu tenho vaidade, que eu estou falando que eu sou o Bom, não. Eu tenho certeza absoluta que eu não sou o Bom, que eu não sou o Melhor, tenho certeza que eu não inventei nada, tenho certeza que ninguém inventou nada, eu tenho certeza que tudo que eu sei e tudo que saberei, é por Intuição. É presente que a gente ganha. A gente não sabe nada, a gente não faz nada, a gente é conduzido a fazer as coisas, com personalidade, com nosso próprio espírito. E não estou dizendo que eu sou espírita, não. Eu sou Músico. Através da música é que eu sinto energia. Eu não acho a música diferente de nada. Se eu tenho cem, completo cem, eu sou o melhor do mundo. Agora, ninguém tem cem. Sabe porque ninguém tem cem? Porque os dias mudam. Porque que a Terra gira? Pra ninguém ter cem. Pra quem quiser transbordar, transbordar e se lascar. O que é transbordar? Beber água demais, enriquecer demais, transar demais, correr demais, ficar famoso demais. Eu sempre segurei o famoso. Jamais eu queria ser famoso porque o famoso acaba sendo o ingrato, um ingrato inconsciente. A fama é que eu não quis. Estou satisfeito com meu reconhecimento, mas principalmente comigo mesmo porque de lá pra cá tem pouca coisa. O meu reconhecimento maior que eu tenho é pela imprensa escrita. A televisão não tem. Tem um reconhecimento embutido, pessoal para cada um. O cara gosta do Hermeto, mas não tem coragem de lançar o Hermeto, nem de falar do Hermeto.
Vou mandar um recado para os músicos: tá na hora dos músicos pararem de reclamar que a música está ruim. A música só está ruim porque os músicos estão tocando mal. Tem muito músico que sabe tocar bem, mas está tocando mal pra ganhar dinheiro, dinheiro de comer, com medo de passar fome. É mais digno ir para debaixo de uma ponte, até ficar lá na rua, do que você vender sua alma. E eu sempre digo isso e é coisa que eu gosto de repetir em entrevista. Não é teimosia, é a realidade. Oh! É aqueles caras que dizem que estão passando fome, mas tem que passar, não tocam nada. Os músicos têm medo de dizer, mas tem que dizer. Nós temos essa vantagem de não ter ética não, você pode falar. Eu digo para o próprio músico: "Você gravou com quem?". "Gravei com fulano, com sicrano". "Pois é, eu não gravo com esses caras, você gravou, o que é que vocês querem?" Às vezes eu critico muitas músicas dos músicos. Mas eu nuncva critico o instrumentista em si. Eu critico o trabalho dele. É a mesma coisa que o Ronaldinho não estar jogando bem, a imprensa não tem que falar bem, tem que meter o pau. É construtivo, eu acho. Agora se o músico está tocando mal e eu sei que ele toca bem e está querendo tocar mal, é pior do que aquele cara que não toca bem, que não alcança. Eu não digo nada, chamo ele e digo: "Você não quer aprender a tocar?" Pra ele, não pra imprensa, pra ele, quietinho, dou um conselho. Agora pro cara que toca bem e está aí fazendo coisa, realmente eu não posso deixar de....
Essa música com o Miles foi o seguinte: além daquela história que eu já contei, eu pulei uma que eu vou contar agora que aconteceu agora, depois dele lá no outro plano. Eu gravei no disco do Miles Davis duas músicas minhas e saiu que o Miles tinha roubado as minhas músicas. Saiu mesmo o nome dele nas minhas músicas. Mas jamais eu, pelo conhecimento que eu tenho com ele, jamais ele ia fazer isso comigo, nem com ninguém. Musicalmente jamais. Então eu falei com toda imprensa do mundo, porque o mundo inteiro me perguntava e já hoje em dia ele já sabem disso. Mas o que aconteceu: quando eu fiz essa gravação, o Miles Davis, por ser um gênio, um cara tão musical, ele aprendeu essas músicas minhas, eu não precisei escrever partitura nem nada. Eu escrevi partitura somente pros músicos que tocaram na época: que foi o Dave Ahola, que tocou contrabaixo.... (corta) Então a partir disso aí, quando eu vim para o Brasil, que o Miles faleceu... É como eu sempre falo, a gente tem muito mais oportunidade espiritual, de intuição. A coisa se aproxima muito mais. Ficou na minha cabeça que eles ficam me pedindo pra tocar, fazer música. Fica aquela coisa toda. Então eu tava compondo essa música (do disco, que eu sei que vocês vão ler a revista e vão comprar depois: compre o disco, ligue para a rádio MEC do Rio.) Aí... (Se eles não derem o endereço eu não dou também não, que eu tô trabalhando sozinho, Aí é demais.) eu me imaginei, que quando eu tava tocando a música falando para o Miles Davis, eu assobiei nas duas faixas. Ele aprendeu gravando essas músicas no estúdio, e ficou. E eu tocando o Hammond, teve uma hora que ele parou, que eu estava tocando num órgão elétrico que ele tinha lá, horrível, mas na hora eu descobri um som no instrumento, mas justamente na hora que eu não tocava com teclado, antes de começar a gravação, eu aumentei o volume e o som veio pela intuição… Uáaa, Uáaaa... Aí o Miles correu de lá e disse: "oh, que som, que coisa bonita isso aí". Então nesse meu disco agora, que eu fiz essa música e dediquei a ele, como eu estou tocando flugelhorn, agora, quis homenageá-lo, retribuir, que eu acho que aquele convite que ele fez no disco dele foi uma homenagem para mim. Eu acho que foi, muito bonita. Então o que acontece, quando eu estava compondo esta música aqui eu não pensei em compor nada pra ninguém, nem para ele nem para ninguém eu não premedito as minhas coisas. Eu comecei a tocar a música e comecei a achar muito parecido com ele, porque eu não faço música para ninguém, eu dedico para as pessoas, porque tem música que parece com as pessoas, como na fotografia. O Caca tá aqui me vendo e ele sabe que é assim . Tem música que parece com fotografia. Então é o que eu acho, tem músicas parecidas com aquelas pessoas então eu dedico àquelas pessoas. Tem pessoas que se assustam comigo ao ponto de dizer "Pô mas você não me conhece mas está me dedicando a música." Pois é mas você é parecido com esta música aqui. Qué ou não qué. "É eu gosto. Bom aí o que aconteceu, dediquei para ele , mas me comunicando muito com ele espiritualmente. Comecei a tocar e sentia muito a presença dele na minha mente. Ai, ai, ai, ai, ai, né. Na gravação é que estava muito mais forte a intuição, né. Aí primeiro eu fiz essa gravação, eu gravei... você pode ver que começa com a capela só com os flugelhorn com os quatro flugelhorn e aquilo ali eu fiz depois, que é a introdução ali mas eu fiz depois, botei como introdução porque eu quis mostrar para ele, conversando com ele, eu conversando com ele, brincando com ele, dizendo para ele, " Olha aqui o flugelhorn, eu vou tocar um negócio, um samba aqui , para você ver como é que eu estou tocando samba no flugelhorn, Aí eu fiz aquele pedaço que não tem nada a ver com a música que eu dediquei para ele. Aí na contra capa eles erraram, não entenderam bem o que eu disse e colocaram como se fossem duas músicas, não são duas músicas, aquilo é uma música só Aquilo é a introdução da melodia.
E outro tão importante quanto o Miles Davis, pra mim é tão importante que no Brasil tinha que ter estátua em todo canto, deveria ter, ninguém acompanha, ninguém reconhece nada que é o Jackson do Pandeiro. O que esse homem deu para o Brasil. O que é isso! Tão dando estátua para quem não merece nada. Então esse. Vamos ver se acordam gente, para botar uma estátua. Ele não está pedindo nada não. Ninguém está pedindo nada. É uma obrigação ensinar que foi Jackson do Pandeiro e quem é Jackson do Pandeiro. Principalmente quem é Jackson do Pandeiro, no futuro, para as crianças, para o mundo. Os EUA sabem dar valor a Miles Davis a todos seus músicos, aqui não. Porque não é por causa da estátua, estou falando da estátua como um símbolo. Porque o Jackson do Pandeiro, pelo menos na terra dele, pelo menos na Paraíba tem que ter a estátua dele. E se tem e eu não sei é porque então vocês também são burros e não divulgaram, tem que divulgar também. Então, outro genial também é Borguetinho, esse graças a Deus está aí com a gente para viver mais quinhentos anos. Esse é outro cara que eu não sei porque, eu digo não sei mas eu sei porque, eu não sei eu sinto. É um cara que eu tenho uma afinidade tão grande. Então eu dediquei uma música para ele. Quando eu toquei essa música aí já foi a cara dele. E ele quando escutou a música, ficou parado na música. E eu fiz a partitura e mandei para ele. Mas só que eu acabei gravando primeiro do que ele. Porque minha ansiedade era muito grande de mostrar, sabe como é sei lá de homenagia-lo. E também de fazer isso para ele gravar também logo. E eu quero que ele grave essa música porque será completamente diferente do jeito que eu vou tocar.
 

18 dezembro 2011

COMPASSO DE TERREIRO

publicado na graffiti 5 em 1999

A história do Wilson
WILSON MOREIRA: Eu sou de 36, eu sou do subúrbio de Realengo, eu era da Mocidade Independente escola ali de Padre Miguel, vizinha do Realengo. Fui um dos que ajudei na fundação da Mocidade, que era um time de futebol na época, depois formou uma escola de samba com a série de sambistas que tinha ali de Realengo e sambistas de Padre Miguel. Lá tinha a escola de samba Os Três Mosqueteiros, ficava lá no Murundu (Padre Miguel), era uma escola muito boa que desfilava com as grandes naquela época na Praça 11, o Nelson deve saber disso.
NELSON SARGENTO: Primeiro ano que eles desfilaram ficaram em segundo lugar.
WILSON : Aí a escola, não sei lá qual foi o motivo, pegou fogo numa confusão e a escola acabou. Então essa turma de sambista que tinha lá, alguns foram para a Mocidade, Renatão, Ari de Lima, Seu Dengo que era da Portela e muitos mais, foi onde conheci o Toco de Padre Miguel, aquele grande compositor. Eu era um moleque novo, cresci ali batucando. Primeiro ano meu na Mocidade era na bateria do mestre André. Foi na praça 11 e chegamos lá em primeiro lugar em tudo. Passei para uma ala depois, sai puxando a ala dos boêmios.
Já tinha minhas músicas na mente, mas tinha vergonha de mostrar, era difícil a gente mostrar música, era um respeito danado. Me perguntava, “será que eu fiz alguma bobagem?” O primeiro cara que olhou minha música e falou que eu podia mostrar sem medo foi o Paulo Brasão. Eu vim pela Mocidade coisa e tal, quando chegou 68, foi quando eu sai da Mocidade. Os sambistas saiam da cidade e iam para lá assistir aos ensaios. E via a gente cantando, eu tinha lá meus sambas de terreiro, o terreiro era uma coisa de louco. Sabe quem gravou um samba de terreiro meu? Leny Andrade. Ela ia fazer um disco com sambista de escola de samba, numa ocasião na década de 70, e o produtor dela, que era o João de Aquino, me chamou e disse: Moreira mostra um samba teu da Mocidade. Ai mostrei né. Ela gravou dois sambas meus, um de terreiro e outro com um parceiro que eu tinha lá, chamava-se Josan, um samba muito bonito. Em 68, Seu Natal já tinha me convidado para ir a Portela. Ai encontrei um amigo: “Ô Wilson, vou à Portela, sou diretor lá tenho que tá na reunião”. Ai eu disse: “Vou até lá contigo”. Chegou lá na reunião, me receberam de pé, a diretoria toda. Me agradei. Aí Seu Natal, presidente de honra, falou assim: "Esse é o garoto que eu falei lá de Padre Miguel". Depois falou: "O garoto vai assistir à reunião dos compositores, ai fui, o Picolino era o presidente: “O Wilson Moreira tudo bem, veio assistir à nossa reunião”. E eu: “Olha, pelo que eu tô vendo, vou ficar com vocês”. “Ah! pra gente é um prazer”.
Com Ari do cavaco, Jair do Cavaquinho, Casquinha, tudo mundo lá. Mas nessa época eu já conhecia os sambistas quase todos, o Nelson Sargento, é um camarada que já conhecia a muitos anos, a gente viajou muito, fazendo show com o Zuza Homem de Melo em SP, lá na...
NELSON : Record
WILSON : É os caras cara vinham aqui, gostavam das coisas que a gente fazia e levava lá para SP, no Anhembi. Eu já conhecia o Nelson da época do Rosa de Ouro, eu ficava olhando assim com medo de chegar perto, é aquela historia de chegar... , não é que nem muita rapaziada de hoje que chega e vai chegando.

Primeira gravação
WILSON: Em 72, o Adelzon Alves produziu uma série chamada "Quem Samba Fica". Ele então falou assim: “Moreira eu queria um samba teu que eu gostei e vou colocar na voz de um rapaz lá de Padre Miguel”. O Adelzon Alves é um produtor muito nosso amigo, dá muita força para os sambistas e produziu um disco de um cara, o Edalmo, lá da Mocidade e cantou um samba meu. Aí ele falou assim: ”No próximo, você vai entrar no disco”. Aí eu entrei, em 74. O primeiro foi em 72. Ai ele fez eu, Dona Ivone, Sidnei da Conceição, Casquinha e Flávio Moreira. Estes discos assim ... chamados Pau de Sebo, sempre aparece um ou dois, às vezes até mais. Então neste disco saiu eu e Dona Ivone. A Odeon se prontificou em fazer um disco com a gente, e mais tarde fizeram, primeiro com a Dona Ivone e depois comigo e com o Nei Lopes. Aí eu encontro com Délcio Carvalho na galeria da gravadora Odeon ali na Av. Rio Branco 277, naquela época.
WALTER ALFAIATE: Edifício São Borges.
WILSON : Aí o Délcio falou assim: “Tem um amigo nosso que tá doido para te conhecer, é o Nei Lopes”. O Nei era publicitário. “Ô Nei, vou te apresentar um cara que bota música até em bula de remédio que é o Wilson Moreira”. Aí nós começamos a fazer música. Nesta época eu estava fazendo música com o Candeia e ele ficou meio emburrado comigo: “Poxa rapaz, estava começando um trabalho tão bom, estava pensando que a gente ia dar continuidade a isso!”
Eu sou um cara que não sei dizer não para ninguém, só se o negócio for feio mesmo. O Nei me ofereceu umas parcerias, me mostrou umas letras muito boas, que eu gostei. Aí eu falei: “Candeia não vá se aborrecer comigo”. Mas mesmo assim Candeia e eu continuamos a fazer umas coisas assim devagarinho. Bom, mas tudo, todos esses convites, veio de uma gravação histórica que nós fizemos, chamado Partido em Cinco. Foi eu, Candeia, Velha, Casquinha e Anésio. Esse disco aí chegou nos ouvidos do pessoal de rádio, e, bom, aí tocava toda noite. Minha música tocava, eu fiquei conhecido e quase toda roda de samba que a gente ia, tinha que cantar que as pessoas pediam: “Canta aquela música!”. Bom, foi através desse disco que o Adelzon ficou me conhecendo e me convidou para este negócio todo e de lá para cá eu vim mimbora. E honrando a bandeira da Portela, sem esquecer a Mocidade, que foi onde começou tudo.

Três gerações do samba?
NELSON : Duas gerações , eu e o Walter temos a mesma idade.
WALTER: Nãaaaao (risos gerais), são oito anos malandro, oito anos. Quando eu tinha 12, tu tinha 20, tu me dava cascudo, eu nem podia te encarar, agora já fica diferente.
NELSON : Tu tem 70.
WALTER: Eu tenho 68, a geração parte de 10 em 10 anos, já o Wilson não, ele é mais novo. Poxa, quê que há?, são 3 gerações mesmo.
NELSON: Eu penso o seguinte: em cada esquina deste imenso Brasil tem Cartola, tem Nelson Cavaquinho, tem Roberto Carlos, tem Paulo da Portela o difícil é chegar. Se chega num subúrbio deste qualquer, bota uma roda de samba, você escuta um carinha qualquer cantar cada samba que puxa!! É um dos desconhecidos, é um dos que estão aí, são poucos que conseguem chegar. Então eu não vou considerar o WIlson novo, mas tem o Luís Carlos da Vila, tem Sombrinha, tem o Toninho Gerais, Arlindo Cruz, o Zé Luís, o PQD, Marquinho de Oswaldo Cruz, então ainda tem pessoas na nossa linha, chegar o projeção é que é difícil.
Quando fui lá em BH, que eu vi o tamanho daquela casa, eu disse: Essa praça não é minha, que é que eu tô fazendo aqui? Não era a minha praça, aqui que é a minha praça. Às vezes eu já luto para botar uma platéia aqui... Pô, vou em BH, quando eu vi aquela casa transbordando, aí é que me deu mais medo: Pô e agora?. O que acontece é o seguinte: se você investe numa determinada coisa, ela funciona. Se você investir em mim, no Walter, no Wilson, no Nei, maciçamente, nós vamos tomar conta do mercado. Mas não se investe maciçamente em samba. Eu acho que o samba não vai acabar nunca, o samba é a linguagem popular deste país, é a identidade musical deste país, pode esconder, mas não vai derrubar. Por exemplo, a Globo faz um samba Pagode e Cia., pô!!
WALTER; Não tem um de nós lá, único que foi, foi o Martinho da Vila.
NELSON: O Martinho foi porque a Sony impõe.
WALTER: Se você entra em lojas aqui no Rio não tem meu disco. Agora se entra numa Americanas tá lá comé, sinhazinha, não, Tiazinha, cheeeia a prateleira e não tem um Walter Alfaiate, não quer dizer que eu seja ... Mas bem melhor que ela eu sou, cantando, porque da outra forma ela é bem melhor! (risos)
NELSON: Estava na hora agora destes produtores armar um projeto e levar pra Bandeirantes, levar pro SBT, se você levar um projeto de samba de raiz bem feito eles vão fazer .
NELSON: Quando eu conheci o Walter não sabia que ele era sambista Quando eu o conheci ele tinha uma alfaiataria na Lapa. Ainda levei umas roupas pra você reformar e você nunca me devolveu as porra da roupa, mas eu também não fui buscar. A outra vez que tive conhecimento com o Walter, quando a gente tinha os Cinco Crioulos, que o Mauro entrou que eu comecei a frequentar os Foliões de Botafogo, inclusive uma vez até saimos na frente né.
WALTER: Neste ano ganhamos o carnaval , saiu todo mundo, a maior ala de compositores de todos os tempos.

A PORRA DO ECAD
NELSON: É complicado. Eu já tentei saber como é essa pontuação que eles fazem da execução, ninguém sabe dizer, nem o editor, nem o dono, nem ninguém. É um ponto, esse mesmo ponto vale três reais. Na hora que você vai lá ver... Você tem o caso do Wilson, que tem mais de cinco sucessos, vai lá e cada música contou um ponto. É três merréis o ponto, por cinco sucessos: 15 merréis. Quer dizer, é um negócio que você não sabe. O Ecad é feito pelas gravadoras e pelos editores, eles é que são o Ecad. Na realidade, o que é direito de autor? Direito de autor é a vendagem do disco e a execução da música. Direito do disco o que é? É 8,4% sobre o preço de custo dividido pelo números de faixas do disco. Essa é a matemática e essa é universal. Agora com a gravadora você tem o direito de intérprete, você pode assinar 12%, pode assinar 15%, nunca menos de 8%. A execução da música, que é o outro direito de autor. Quantas vezes toca, é quantas vezes você recebe. Agora como é que eu vou saber, eu, o Wilson, o Walter, se a nossa música está tocando no Acre, no Amazonas, no Piauí, no Maranhão. Não tem como saber. Porquê? Porque nem todo estado da federação você tem o Ecad arrecadando. Tem lugares aí que o direito não passa por lá. Você tem muitas emissoras no Norte e no Nordeste que são de deputados e de senador e esses caras não pagam mesmo. Não adianta você botar a lei em cima deles que eles têm imunidade. Então fica difícil, isso na parte de execução de música. E a fábrica, quando a fábrica diz que você vendeu um milhão de cópias, você vendeu dois. O disco não é numerado. Então você vendeu um milhão e até logo. Você imagina um cara como Xuxa, Roberto, que bate mais de dois milhões. Quando a fábrica publica que vendeu dois milhões, adeus, vendeu muito mais. Mas não há como cobrar. O que é que precisa fazer? Pra defender o autor tem que numerar o disco e gravadora nenhuma vai numerar o disco. Isso depende de uma lei. Os produtores fonográficos vão lá e dizem assim: Uma casa lá em Sepetiba doutor, com todo conforto pra votar nisso aqui. Vai se importar com isso? Execução é o seguinte. Antigamente, na década de 40, a rádio mandava para a sociedade o que tocou, não tinha o Ecad. Mandava mensalmente o que tocou e a grana. Quando veio o Ecad, eles fizeram um sistema de escuta. Vai escutar 24 horas todo o Brasil?
WALTER: É ruim pra caramba.
NELSON: O Ecad é ladrão? Não, o Ecad não é ladrão. Você não pode chamar de ladrão porque você não pode provar que os caras são ladrões. Mas se sabe perfeitamente que nessa mutreta toda há desvio de dinheiro. Você não pode provar. Como eu vou saber que nossas músicas estão sendo tocadas agora no Maranhão? Se tiver, não vai constar, não vai receber. Pode até estar, mas não vai receber. Porquê? Porque o sistema de amostragem é falho. Mas as televisões têm que dar 3% do faturamento bruto para o Ecad. O Marinho diz que não dá porque ele sabe que não vai chegar na mão do autor.
WALTER: Se chegasse na mão do autor, tudo bem.
NELSON: Que há desvio e dinheiro há, você não tem o poder de controlar. Você tem um editor. Por exemplo, o que acontece com o disco? É um direito fonomecânico. Eu editei uma música, tem uma parte aí que é do editor. Aí a fábrica pega e paga pra ele e ele me paga. Quando a fábrica paga pra ele, já paga fraudado e ele me paga mais fraudado ainda. Não há nada que eu possa fazer. O editor é obrigado a receber o que a fábrica paga.
WILSON: Deve acontecer a mesma coisa com vocês. Recebo direito da Dinamarca, Holanda, mas é uma coisa, que se eu mostrar as pessoas, nego fica até embasbacado.
NELSON: O Monarco recebeu do exterior 70 centavos. Um amigo nosso falou assim: “Poxa, eu vi teu samba num daqueles CD-Rom da Microsoft”. Aí ele levou o CD lá em casa e tocou o “Agoniza Mas Não Morre”, tocou a gravação que eu fiz na Kuarup, movi uma ação, ai eu peguei tudo que tem “Agoniza Mas Não Morre”, contrato de edição, não sei lá mais o que, e mandei para o advogado. Isso tem uns quatro meses, ele me respondeu o seguinte: que a microsoft mandou dizer que desconhece e não editou nada, então é pirata, se é pirata eu vou ter que correr atrás, então fui na editora, e ela também entrou com o processo, mas o meu processo está correndo por lá e o da editora está correndo por aqui, então a editora precisa de um intermediário lá para dar andamento. Mas tem mais um detalhe, a editora te cobra quando ela recebe do exterior, tira 50%. Se recebe 10 mirreis, ela te dá cinco. 

NOITE
WILSON: Eu sinceramente nunca fui um cara, nunca acompanhei as pessoas em bebida Mas eu tenho saudade dos tempos da boêmia porque conheci vários boêmios, como Nelson Cavaquinho, eu conheci ali na taberna da Glória, aquilo ali era tão bonito, eu conheci o Alife.
NELSON: Se lembra do Brick, aquele navio que ficava lá no Botafogo? Chamava Brick da Folia, a Mangueira fez muitos bailes ali.
NELSON: A zona sul era um negócio sensacional, as gafieiras Dragão, Eldorado, o Elite do Méier, Tupi.
WALTER : Você conheceu o Laje? No Botafogo esquina de São Clemente
NELSON: Tinha o Fogão no Engenho Novo. Sabe porque que chamava Fogão? Porque só frequentava cozinheiro, tinha um na praça Sans Pena onde hoje é o correio.
WALTER: O Catuca.
NELSON: Era tudo sobrado.
WILSON: Sabe quê que eu fazia naquela época? A gente trabalhava e roupa era muito manjada. Então eu tinha um terno e ai se eu fosse na gafieira hoje com aquele terno e fosse amanhã ou semana que vem com o mesmo terno. As meninas chamavam a gente de canarinho de uma muda só. Aí a Ducal lançou o paletó esporte, lembra disso? aberto atrás.
NELSON: Paletó com duas calças
WILSON: É, paletó com duas calças. E eu comprei uma calça de mescla e um paletó cor de abóbora. Aí eu fui, quando eu cheguei, eu ia no Vitória Danças, ali na rua do Rezende, e quando a gente tava com a roupa manjada aqui neste baile a gente ia lá para Niterói, no Manacá.
WALTER: Depois eles começaram a chamar o cara que ia com o paletó de uma cor e a calça de outra de Caneta Parker
NELSON: Caneta Parker ou saia e blusa.
WILSON: Na Bambina tinha um baile bom ali também, Amante?
WALTER: Amante era na rua da passagem, ali era o Abrantes.
NELSON: E os famosos piqueniques do Samuel? Lá na ilha de Paquetá. 1º de maio e 15 de novembro. Dia 1º de maio não arrumava nada que era dia de piquenique. Foi o Lacerda que acabou com o troço lá. A primeira barca saia às 7h da manha, já ia festa, bebida, gente. Naquela época eu passeava às segundas-feiras, não passeava domingo. Domingo estava tudo mundo passeando e ficava assim, eu só ia para Paquetá na segunda feira.
WALTER: A banda Portugal , lá na Presidente Vargas.
NELSON: Frequentava muito pouco, frequentei muito as duas cervejarias, uma era a Lusitana e a outra esqueci o nome. Chegava lá, pedia a champanhada e o cara trazia uma cerveja e um pratinho de tremoço, o tremoço era grátis. Se pedia a segunda já não vinha o pratinho, tinha que comprar. Nessa época não tinha a Presidente Vargas, tinha a Senador Euzébio de um lado e a Visconde de Itaúna no outro e tinha o canal no meio .A primeira água mineral que existiu aqui no Rio se chamava Idolitrol, o cara pegava um disco especializado colocava dentro da garrafa e sacudia, era a água mineral da época. Qualquer botequim da cidade se tinha uma redomazinha assim com um copo de água gelada, você chegava bebia um copo d’água gelada e ia embora.
WILSON: Eu andava com uns caras que bebiam muito. Anescar bebia tanto, eu não bebia e ficava andando com os caras. O Silas de Oliveira bebia pra caramba e era muito meu amigo e eu não bebia, o Silas de Oliveira saia lá do Opinião, eu ia lá pro Realengo e ele ia lá pra Madureira, ele falava assim : Ô Wilson, eu sei que você não bebe, mas eu vou ali tomar um negócio, vamos lá , ai eu pra não ficar assim ... pra trás, batida de maçã.

A diferença ontem e hoje
NELSON: Não é que antigamente era melhor, o pobre tinha menos vaidade.
WILSON: Menos vaidade, exatamente. Tu comprava dois terno e tava satisfeito.
NELSON: Você passava numa loja e via esta camisa por 10.000 reis, você não podia comprar e não existia prestação, aí você juntava 2000 reis por cinco semanas, se você fosse lá a camisa custava 10.000 reis, tinha uma estabilidade de preço. A vaidade era menor.
WILSON: Olha eu bato palma para essa rapaziada que tem cabeça boa, que dá força em tudo que é atração aí e eu acho que tem de ter muita cabeça pra poder conviver com as coisas, que o negócio é o seguinte: não pode fazer asneiras porque as curtições são muito boas. Eu fui um cara que fez o barco correr sozinho, que meu pai morreu em 45, eu com oito anos de idade, minha mãe era mineirona. Lá em casa, o único sambista sou eu, meus irmãos não são compositores nem nada, negocio deles e dormir cedo, assistir ao futebol. Minha mãe falava assim: “Só o Wilson puxou o pai”. Meu pai foi embora cedo e eu não deixei minha cabeça se perverter. Teve a invasão das coisas de fora de nosso pais muito aqui, americano implantou muita coisa aqui que fez a cabeça da rapaziada, eu acho que a rapaziada não deve deixar se levar.
NELSON: Eu acho o seguinte Wilson: eu, quando me entendi mesmo musicalmente, porque até 1950, 60, eu não tinha uma noção da música do pais, mesmo frequentando Escola de Samba, coisa e tal. Eu não tinha uma noção exata do valor cultural da música popular brasileira, eu comecei a aprender isso quando fui fazer o Rosa de Ouro, em 65. Juntando o que eu vi dali pra frente, com o que eu tinha visto no passado, comecei a fazer uma associação de idéias, porque quando eu conheci o Cartola, eu sabia que ele era importante como compositor mas não sabia que ele era importante num contexto de Brasil, ele, Carlos Cachaça, Geraldo Pereira. As gravadoras tinham de dez a oito sambistas contratados, na Victor, na Odeon, na Phillips, na Columbia, e essas coisas foram diluindo conforme a situação econômica foi piorando. As casas noturnas foram fechando. Olha, eu fiz muito programa do Chacrinha quando eu tava na Excelsior lá em Ipanema. Você já entrava para cantar com o dinheiro no bolso. Ora ele cresceu na audiência, então nego começou a pagar para cantar no programa dele. Degringola as coisas, ele estava pagando para você se apresentar e daqui a pouco ele começa a receber para apresentar você.

15 dezembro 2011

Entrevista com José Muñoz

Publicada na Graffiti 4, em 1998

José Muñoz é um exponente daquela escola argentina que, na década de Setenta, marcou com o preto e branco o mundo das HQ’s. Munõz vive hoje num apartamento com altos corredores marcados por luzes e sombras agudas, numa velha casa em Milão.
Conversamos por quarenta minutos ao telefone: eu, no meu italiano abrasileirado, ele, com seu espanhol grave, italianizado. Saiu o retrato de um artista ligado à essência do seu trabalho, apesar das dificuldades do mercado editorial.

 
Como começou a mexer com quadrinhos?
Sempre gostei, desde muito pequeno, intuir a complexidade das paisagens rarefeitas e as angulações divinas que a mistura da palavra com o desenho pode comportar. Me senti atraído instantaneamente pelo richiamo1, depois disto naveguei quarenta anos nesta linguagem, muito tempo...

Você freqüentou o curso de quadrinhos da Escola Panamericana de Arte Argentina...
Sim, esteve lá com Dominguez, Bozzofi e Breccia como professores. Breccia era o professor da escola de desenho em preto e branco, estudava-se anatomia, faziam-se exercicios de ditar um sceneggiatura2 em imagens. Ali estava também Pratt mas eu não o tive diretamente como professor pois ele tinha acabado alguns meses antes de eu começar. De qualquer forma eu sou um prattiano matinal3.

Os primeiros trabalhos publicados são desta época?
Sim, trabalhei numa editora que funcionava numa modesta casa do bairro de Barraca. Gostaria de tocar aqueles ambientes com meus desenhos. Um rapaz tinha montado uma revista que se chamava Rapidoso, e eu comecei a trabalhar pela pequena editora. Ele escreveu uma história de cow-boys, o seja, os vaqueiros estadunidenses e eu realizei uma coisa meio surreal, de fato eu tinha os meus 16 anos...

A influência de Breccia e Pratt então foi à base do seu traço ‘expressionista’?

Digamos que com Breccia e Pratt eu tive abertas duas janelas muito grandes, através das quais eu cheguei em outras janelas e outras janelas ainda. Eu acho que as janelas que podemos trazer é um caminho que há dentro de cada um de nós. Acho que a linha de Pratt pode ser definida expressiva. No preto e branco e nos contrastes de luz e sombra trabalhou muito mais Breccia, sobre este versante expressionista, se assim convencionamos chamar toda aquela corrente artística que vai do começo do século até os anos trinta e da qual eu gosto muito. Vejo que eles viam, enfim.

Como foi o encontro com o roteirista Carlos Sampayo?
Com Carlos nós conhecemos na Espanha, em ’74. Foi através de um amigo comum que morava em Londres e intuiu que poderíamos fazer alguma coisa juntos. Foi uma amizade instantânea e apesar de não trabalharmos juntos há cinco anos não perdemos a esperança. Minha mudança para a Europa se deve fundamentalmente a uma necessidade de trabalho. O desejo de me aventurar em outras realidades porém era muito forte, queria ver outros desenhos reais: outros países... e o desenho de outros países. Queria descer ao desenho de coisas diferentes, queria viajar no sentido curioso do termo e este trabalho o permite.

As referências culturais deste pais antigo que é a Europa como te influenciaram?
Não posso exclui-lo, mas de qualquer maneira não tenho a contraprova de como teria me desenvolvido no meu país, admitindo que as condições econômicas o tivessem permitido. Nos últimos trinta anos aconteceram muitas surpresas na vida, boas, ruins... e isto muda também o desenho. As vezes acho que há um tremor particular dentro de cada desenho, vai se transformando de acordo com a experiência de ser humano dia após dia neste contexto um pouco caótico e arcaico. Este país no qual eu vivo, assim como os países vizinhos são um pouco como as casas dos tios para nós argentinos, daqueles tios até simpáticos então... Mexi-me um pouco neste minúscula bola de barro que se chama terra, isso é o que eu fiz.

Você desenha historias de outros autores. Costuma intervir nos roteiros?
Com Sampayo fundamentalmente ele escrevia e eu desenhava, porém depois ele entrava na minha área e eu na dele, talvez mais eu na dele, pois tínhamos que estar de acordo sobre o conteúdo, tínhamos de encontrar algo que divertisse a ambos e nos divertíamos em mesclar as nossas visões. Vê-se um pouco uma mistura harmônica na nossa colaboração. Desde ’92 (ele esteve muito doente até ’94) interrompemos o trabalho junto. Eu desenhei outras histórias com outros escritores e agora estou fazendo um segundo trabalho com o escritor norte-americano Jerom Charim. É um conto pela Casterman, a transposição em quadrinhos de um romance que se chama Pannamaria. Em ’96 fizemos também uma outra história que se passa nas américas e que em Italiano deve-se chamar O canino do serpente... Pelos contos compridos sempre trabalhei com escritores. Crítica social e antropológica, autocrítica através dos outros e todas aquelas piruetas que podemos fazer dentro daquele parque de diversões que é a palavra e o signo.
Faço imagens mudas, acho que são muito narrativas. Isoladas, em cores, as exponho e às vezes consigo também abrir uma série de janelas em direção à expressão das imagens por figuras. Gosto muito da possibilidade de isolar as imagens, não no sentido ruim da palavra, não quero isolar por isolar, mas sinto um pouco que a história real falta de sceneggiatura, que há muitos personagens sem diálogos e que não pertencem à sceneggiatura da história, são para poucos leitores e brincando nestes esfumados você pode dar um pouco de vida a este tipo de pensamentos, a estas imagens que te assalem. Tento de colocar os desenhos vagantes que tenho dentro, tento de colocá-los dentro estruturas que propõem narrar como colaboração. Você vai colocando suas obsessões.

O desenhista faz um trabalho de introspeção das imagens? Estas surgem de dentro ou são gravadas do mundo objetivo?
Nós somos um olho que pensa, que olha para dentro ou para fora. Não há uma precisa fronteira neste caos delirante que é a vida, pois alguém com esta particular obsessão, desejo, tem talvez a capacidade de dar vida às coisas desenhando. Eu acho que é um caminho assim, também de investigação interna, de nirvana, de sortudo passatempo4 para atravessar as penúrias do mundo, o que não quer dizer que um tenha que se esconder nos traços, mas um tranqüilizante, um calmante é sempre necessário quando você olha a realidade na cara.
A possibilidade de tocar no fundo os leitores vem da capacidade do desenhista de olhar profundamente dentro de si?
A possibilidade, o desejo, a condenação... as coisas deveriam ser feitas sempre o melhor que se pode. Quando alguém lança histórias ao mundo é um trem complicadíssimo, os desenhos são uma representação de quem os tem feito, com a elaboração de uma linguagem feita por homens. Esta é a viagem das impressões que você vai recebendo.

Esta visão mais subjetiva do quadrinho autoral como se incaixa na realidade do mercado? Hoje este tipo de revista está sumindo...
Somos uma espécie que viu seu campo pegar fogo nos últimos 7-8 anos. Além disto há uma progressiva dificuldade das gerações que chegam a acessar à linguagem dos quadrinhos, porque tem outras coisas que talvez os impeçam de gozar deste prazer quieto, imóvel do escorrer das histórias com desenhos e palavras... mas podemos nos queixar contra este destino cínico e avarento, podemos continuar a fazer. Eu sou também perplexo quando falo com pessoas que querem fazer este tipo de trabalho, devo adverti-los das nuvens negras, Não é dito que você tenha que se fixar que este trabalho tenha que te dar o que comer. Chegamos a situações praticamente artísticas, no sentido bom da palavra. O amor pela arte tem que sair se você tem a tentação de contar coisas nesta linguagem mesmo quando o vento sopra contra. Digamos que para o nosso tipo de conto, agora com Sampayo seria difícil propor uma coisa que as editoras acham que venderá menos de 10.000 exemplares. Nos álbuns na França, por exemplo, as coisas estão se nivelando através da exclusão dos autores que vendem menos. Estas histórias não foram feitas olhando à venda. Com Sampayo as histórias sempre vieram dentro de nós, num momento particular e é uma parte arriscada do nosso trabalho mas que o faz gozável, no sentido profundo do termo, pois conseguem um pouco fixar as impressões do passar do tempo, talvez também através destas precisações. Assim em quem o olha, e depois em quem o olha para ver que tipo de caminho pode empreender naquele universo do desenho e da palavra, há tremores humanos que nos acompanham há séculos. Eu acho que somos um pouco dinossauros, é a última escrita manual que consegue ser impressa, não sei por quanto tempo! Aquilo é uma caligrafia. Os nossos estilos são caligrafias da alma, aquilo que bate dentro de nós, aquele imenso caos de interinfluências, tendências de vida, ou seja todo o caos da criação e de frutos temporâneos numa série de ‘ências’.

Talvez a educação pode ser uma opção para o quadrinho autoral?
Educação em que sentido? Sempre é educação se você faz quadrinhos e os faz bem...
Entendo a educação escolar, no sentido de romances históricos em quadrinhos que possam oferecer através do desenho e do texto uma referência mais profunda e estimulante para os alunos que as vezes estudam em livros pouco interessantes.
Quando se faz um filme, principalmente, um livro ou uma biografia inventada por um escritor de um personagem histórico estas coisas podem ser feitas. Você pega um pouco o caráter da história, marcando o momento adaptado à sua figura, se considerar que por estas razoes seja possível ser... mas deve vir de dentro porque geralmente quando se fazem coisas didascalicas5 estas cumprem sua função... tá bom, você ganha um pouco mas é o conto de um personagem histórico nas mãos de fábricas de lingüiça, coisas meio dozinais6, simplistas ou seja, algo muito didascalico. Mas não é dito que você não possa fazer coisas muito lindas. Bom, aquilo que fizemos com Sampayo, por exemplo, quando fizemos a Billie Holiday, pegamos uma pessoa muito querida, pois sua voz é como uma pessoa para nós e a pessoa que tinha por trás nos deixou apaixonados ao máximo pelo seu talento e agradecidos fizemos uma história próxima e distante ao mesmo tempo à sua vida real, fizemos uma espécie de versos, de diferentes brani7 musicais. Sampayo com as palavras e eu com os desenhos. Toda aquela história é um brano musical desenhado. Todas estas coisas por baixo quando se misturam os diferentes filmes da linguagem, quando vem um pouco a vertigem, o tordeziño8 o remoinho das línguas que se misturam ... parte integrante da nossa identidade, uma entidade muito móvel... Para falar destas coisas tento sempre de fazer sair a pessoa que está por trás do desenho e da palavra, eu tento fazer coisas vivas.

A música sempre foi presente em teus quadrinhos: em ‘Alack Sinner’ há uma citação a Gato Barbieri, e ainda há histórias como a da ‘Billie Holiday’ e ‘O trompete do diabo’ do Batman Black & White. Como passar no quadrinho uma sensação parecida com a da música?
Acho que é um pouco aquele arrepio nas costas que me dá um acorde musical, a passagem de uma sfumatura9 para outra numa pintura, num desenho riuscito10, um pescoço que crio, uma expressão válida que crio e que casa com aquele pescoço quando há uma paisagem na qual as arvores são tremulantes, fremindo no espirito de quem os desenhou. Quando você entra assim no estado do movimento, ali você alcança, como dizer, através da exploração da linguagem... acho que neste caso a música se alcança num contraste particular, acho que numa pincelada do Pratt ou num traço do Breccia eu posso encontrar um acorde musical conseguido. A música do Pratt são as luzes e as sombras, alí e dentro. Logo quando nós fazíamos a Billie Holiday havia como uma orquestra que batia dentro de nós ao ritmo da sua música, nós éramos levados pelo seu ritmo. Pelas diferentes linguagens que temos em nós podemos individuá-lo.

Em teus desenhos é a sombra que revela a luz, ou a luz à sombra? Ou é um dialogo?
Acho que é um diálogo. Geralmente começo com os traços de pena, mas há vezes que começo a manchar, depende do que vejo. O olho quer, mas as vezes sente a influência como acontece na famosa realidade.

Você realizou poucos trabalhos em cores, eu vi um episódio de Alack Sinner, ‘Norte-americanos’, talvez colorizado posteriormente e uma vibrante capa da revista ‘El Víbora’ pela história ‘Outono e Primavera’. Você prefere realizar histórias em preto e branco?
Prefiro ambos, um é o antídoto do outro... eu vou fugindo, sou um fugitivo (risos) e vado alla macchia dentro de mim... na verdade recorro aos dois por razões alternadas, como as vezes prefiro começar a fumettare11 sabendo de onde parto mas não aonde vou chegar. Às vezes você pode trabalhar numa história que tenha já o desenvolvimento definido, outra é apenas um canovaccio12. Você vai buscando coisas alternadas na vida, depois você escapa da rigidez, da estrutura preconcebida e se joga nas águas do quadrinho navegando sei lá para onde. Mas ambas estas coisas são muito atraentes. Eu faço uma familiaridade entre cor, preto e branco e história pronta para ser posta em imagens, outras vezes preciso fazer coisas verdadeiras, como estou fazendo histórias muito compridas para ter a possibilidade de fazer algo de finito cada dois ou três dias, pois se perdem os meses com as histórias sem limites com as páginas que lentamente vêm a luz, aí vou buscar também idéias que me assaltam, desenhos que depois desenvolvo... acho que tudo isto é o resultado da fecundação necessária entre uma coisa e outra, de suas necessidades internas e também da possibilidade a respeito do mundo externo, a famosa realidade, de ter possibilidade de fazer coisas diferentes.

Há um momento, principalmente nas histórias compridas, no qual a ficção chega a afetar a realidade, extrapolando os limites da página? Lembra alguma em particular?
Aquilo que inconscientemente acho que sempre tentamos fazer foi pular fora da página, chegar a fazer aquilo que escrevia Oesterheeld, quando eu comecei a publicar histórias roterizadas por Oesterheeld, tinha 17 anos, algum ano depois daquela experiência que contei antes, comecei a ter trabalho com ele, que não fazia nenhuma restrição visual, ou quase, colocando de vez em quando o caráter ‘mira al lector’. Podemos dizer que nossos trabalhos tentam ser um olhar ao leitor quando você cruza o olhar com alguém e se produz aquele desejo que não seja apenas papel, que não seja apenas um trabalho de preencher as páginas chatas, falando com respeito, mas sem vida, sem envolvimento pessoal do autor com a história que está contando, sem um investimento emotivo.

As perspectivas para o futuro. Algum trabalho para ser realizado? Um sonho na gaveta?
Sonhos, sim! No caso do desenho poder realizar um trabalho que retrate uma parte do meu país, um aspecto particular da Argentina no sentido europeístico cosmopolita, gosto daquela parte do meu país que não se perdeu completamente, que mantém aquela sua multi-origem que você encontra lá como aí no Brasil, mas com outra temperatura, com outra mistura, com um outro resultado no sentido estético, glorioso ... que é a multiplicidade dos nossos países. Tenho que fazer uma série de imagens argentinas a dois ou três cores para um livrinho que vai sair. Me dá muito prazer pensar que me espera.

1 Richiamo: apelo, chamado.
2 Sceneggiatura: cenografia narrativa, story-board.
3 Prattiano matinal: discípulo de Hugo Pratt.
4 Passatempo: uma forma de passar o tempo, como os jogos com baralho.
5 Didascálicas: de didascalia, legenda. Texto que aparece no quadro.
6 Dozinais: que se vende à dúzia. A quantidade frente à qualidade.
7 Brani: parte de uma música.
8 Tordeziño: torvelinho.
9 Sfumature: de sfumato, esfumado.
10 Riuscito: conseguido, bem sucedido.
11 Fumettare: fazer fumetti, ou seja, quadrinhos.
12 Canovaccio: pano, papel onde é rabiscado o esboço de uma história.

14 dezembro 2011

Arrigo Barnabé: um réptil pensador

Entrevista de 1998, para graffiti 4.
Fomos à casa de Arrigo, em Itaim-Bi-Bi saber o que ele anda fazendo ultimamente. Mais conhecido por fazer parte da Vanguarda Paulista do começo dos anos 80, o trabalho de Arrigo está à parte do grande público. O músico se mantém firme e fiel aos seus princípios. Compõe atualmente mais voltado para a música escrita, preocupado com seus problemas internos. Sua história ilustra bem o que enfrenta um compositor de qualidade que não rende às facilidades do mercado.

A nossa geração pegou um rescaldo marxista da história que não existia antigamente, aquela coisa do povo. A gente pegou isso no começo da nossa carreira, uma preocupação. Começamos na época da ditadura. Depois de dois anos e meio que eu tinha lançado o “Clara Crocodilo”, a Poligram, que chamava Ariola, comprou o disco e me contratou para fazer mais dois discos. Fiz o “Tubarões Voadores” e eles investiram, dispensaram uma grana pra produzir o disco. Mas ao mesmo tempo, estavam lançando Simone. Eles pensam como um produto. Agora, foi impressionante eu ter ido para a Poligram, ter sido contratado. O “Tubarões Voadores” é um disco caro, saiu com encarte de história em quadrinho dentro. Daí pra frente a coisa não pegou mesmo, ficou difícil e eu já tava de saco cheio porque eu não ganhava dinheiro. Aí fiz o “Cidade Oculta. E o “Cidade Oculta” tinha "Pô, Amar É Importante" que fez muito sucesso na época e era um disco já voltado para o mercado. E depois eu fiz o "Suspeito", que já era um disco de mercado mesmo. Eu gosto do disco, a única coisa que acho ruim é que eu canto mal, mas o disco eu acho legal. Se tivesse um bom cantor, ia ser um disco de mercado normal.
O público que eu tinha era mais ligado a música popular, que não tinha acesso a esse tipo de coisa. Mas que de repente via e achava um barato, eu gostava. Os caras curtiam, iam ao show, nunca tinham ouvido e: Pô. é legal! Mas era uma coisa pequena no sentido de que quem ia ao show, eram pessoas que não tinham dinheiro para pagar um ingresso caro, a maior parte era estudante, mas pegou bastante gente. Não era para você ir a casa nobre, era sempre um teatro popular. Mas, puxa!!! Para o tipo de música que era feito era surpreendente. Era impressionante como as pessoas curtiam um negócio completamente maluco. Agora, as críticas, talvez
o pessoal achasse que não dava para cantar as melodias. Cadê a melodia??? Mas não se sustentavam. Mas a crítica maior era a que dizia que eu imitava o Frank Zappa. A diferença é o seguinte: ele pensa a música, a composição dele muito ligado ao rock. Já eu, penso de uma forma mais contrapontística, de contraponto.
A mistura de erudito e popular apareceu no tropicalismo. Rogério Duprat principalmente, ele iniciou uma espécie de fusão entre a música erudita, moderna e contemporânea e a música popular urbana. E eu me insiro dentro desse negócio aí, que tá ligado diretamente com o Rogério Duprat. Hoje em dia, tenho mais clareza para perceber que eu estava fazendo era um trabalho muito mais erudito que popular. Muito mais, vamos dizer, é um trabalho erudito com um grau de comunicação maior. Erudito eu digo só para situar o tipo de música. Tem um grau de comunicação grande por causa das letras, da temática, meio história em quadrinho, personagens e tal. Tem tantas formas musicais e a canção é uma delas, enquanto que na música popular, só existe a canção. Mas a canção na história da música é um negócio pequeno. A letra, o texto tem o poder de comunicação fácil, rápida. Os eruditos, a maior parte não faz canção, faz música instrumental. Então como as pessoas vão ter acesso a isso? Não tem o texto para carregar.

Eu gosto muito da década de 30 e 40, esse período da música brasileira, porque a mpb apareceu depois, na década de 60, essa sigla aí, antigamente não era isso. Eu gosto muito desse período e conheço mais ou menos bem os compositores dessa época, os cantores. Acho um período muito rico, um momento que só foi ser encontrado depois, na bossa nova. Pessoas que faziam música muito bem, trabalhavam melódica e harmonicamente. As letras também são muito legais e a música na época era mais ligada imediatamente às pessoas. Hoje em dia é um negócio imposto.

Lancei agora (agosto) o "Gigante Negão” pelo Núcleo Contemporâneo. É uma ópera, uma pseudo-ópera que eu fiz em 1990, que estava abandonada. Tem uma narrativa, é um negócio meio ligado com mitologia. Começo com a história da queda de Lúcifer, a volta de Lúcifer ao paraíso, passo pela coisa do ferreiro, que é a primeira pessoa a transformar a matéria, o precursor dos alquimistas e cientistas. Tem uma historiazinha interessante, que é a rebelião do arcanjo Miguel. Depois de Lúcifer, o arcanjo Miguel resolve se rebelar e resolve interferir na criação achando que o homem é mais apto a criar um Messias, porque o Messias que Deus mandou não adiantou nada e as coisas estão tudo piorando. Então ele inspira um cientista brasileiro para que ele crie um novo Messias, que seria um clone do Gigante Negão. E isso foi em 90, antes de surgir a coisa do clone e tal. Isso tudo com a linguagem um pouco do James Joyce, de “Finnegans Wake”, de “Ulisses”.

"A pseudo-ópera Gigante Negão foi apresentada apenas três vezes em setembro de 90 no Palace, São Paulo. Até novembro de 97 eu não sabia da existência de uma gravação deste trabalho. Na época uma série de infelizes circunstâncias, incluindo minha terrível auto-crítica, fizeram com que considerasse esse material descartável. Esse rabalho foi abandonado por oito anos. Em novembro de 97, Marcelo Salvador operou o som em um show que fiz no Parque da Aclimação. Eu me lembrava de conhecê-lo mas não sabia de onde. Ele contou-me que junto com o Nica, havia operado o som nas três únicas apresentações do Gigante Negão e que havia feito um registro em cassete na segunda noite. Disse ele que apesar de ser em cassete, a gravação estava muito boa". Eu fui ouvir e estava boa pra xuxu, impressionante, inacreditável. E há músicas maravilhosas que eu não me lembrava. Eu não tinha fita, não tinha nada. Não sei nem onde que estão as partituras disso. Eu perdi uma grana pra fazer esse negócio e fiquei traumatizado.

Fazer música para filme, a princípio, é muito atraente, mas depois de um certo momento, quando você vira um profissional do negócio, você já não curte tanto porque você está sempre dependendo do diretor. É raro um diretor chegar e falar: “faz o que você quiser”. Você tem que tá entendendo o diretor. Tira um pouco o prazer de fazer a coisa, mas é uma coisa de desafio. Você tem que aprender a fazer como a pessoa quer. Mas o pessoal de cinema me procurava para trabalhar com eles porque minha música é muito catártica. Aquelas coisas meio obsessivas, repetidas, mas estranhas, é um negócio que o cinema precisa muito, essa coisa de catarse, então o pessoal ficava meio alucinado com isso. E as letras não eram poemas, não eram letras falando de amor, eram narrativas, eram pequenas histórias. Tem também essa ligação com a linguagem do cinema e quadrinhos.

O disco “Tubarões Voadores” ia chamar “Crotalus Terríficus”. O Luis Gê estava preparando a capa do disco e eu passei no ateliê dele para ver. Aí tinha acabado de fazer o “Tubarões Voadores”. Quando ele me mostrou a historinha eu disse: “Ah!! Luis Gê, vou musicar essa historinha e o disco vai chamar “Tubarões Voadores!” A gente já tinha comentado várias vezes de fazer uma historinha com música , trilha sonora. Aí fizemos. Eu medi mais ou menos o tempo de leitura de cada quadrinho e musiquei quadrinho por quadrinho.

Fiz agora no Festival de Campos do Jordão uma peça para orquestra, banda de rock, quarteto de cordas, dois pianos e percussão. É uma peça de fusão, que mistura todas as coisas. Estou fazendo agora uma peça para violão solo, fiz uma peça para vibrafone. Tem várias coisas e eu quero compor assim para esse lado. Eu vou regravar o “Clara Crocodilo”, com uma formação instrumental mais adequada. Naquela época era mais ou menos o que tinha. Tinha era aquilo, então faziam aquilo. Eu sempre quis utilizar metais mais pesados. Agora tem a possibilidade de gravar de um jeito mais.... Meu trabalho tem a parte rítmica, tem a ver com o rock, com a música urbana, com jazz, com samba, com baião, com a música indiana, todas essas coisas de música...
Eu quero é conseguir compor bem, fazer meu trabalho bem feito. Resolver meus problemas técnicos e estéticos. A minha preocupação maior é um negócio interno meu. O meu trabalho, o meu artesanato, minhas soluções que eu vou dar para os problemas de construção da obra. Eu já tenho um espaço meu e tô trabalhando também em outra área, outro âmbito. Não é pra muita audiência mesmo essas coisas que eu tenho feito ultimamente. São muito especializadas. Eu estou mais interessado na música mais escrita, no pensamento musical. Tô nessa onda agora.

Os discos estão na Polygram, três deles tão na Polygram, um tá na Continental e o que tá no Camerati foi o que saiu em CD que é o “Façanhas”. A Polygram ficou de lançar em CD, mas não lançou nada. O que é uma besteira deles porque eles podiam ganhar dinheiro. Ele disse que não ia vender, pombas. Mas os discos venderam. “Tubarão” vendeu 15 mil. O “Clara” vendeu 30 mil. Quem tem em vinil vai comprar em CD. Acho que é desorganização deles porque é dinheiro que vai entrar pra eles. Não vai ter custo de nada e entra dinheiro. Só mandar prensar. Sai a R$ 1,60. É horroroso.

Eu não sou Música Popular Brasileira. Agora o Itamar é. E o Itamar é um cara que eu não entendo como ele não estourou. O Itamar é uma espécie de Jorge Ben novo, atualizado. Ele é um cara que tem uma coisa popular e uma lucidez grande. Ele tem uma inteligência que ilumina. O Itamar diz que acha que vai estourar na voz de outras pessoas, das cantoras aí, da Cássia Eller, da Zélia Duncan, mas ele tem tudo pra estourar sozinho. Ele é ótimo cantor. Eu gosto dessas meninas e tudo, mas acho que o Itamar tem mais presença no palco que elas, ele impressiona.