13 dezembro 2011

Sangue nos Olhos: Itamar Assumpção

Entrevista publicada em 1997 na Graffiti 3.
Itamar Assumpção
A própria entrevista - eu e Pablo perambulando meio tontos, meio calados, um pensando sem parar, o outro parando pra pensar, ônibus, metrô, bar, cerveja, outro bar, mais cerveja, BH, SP, 96, 97 - a própria entrevista parece-me uma estranha e viva metáfora de como é difícil chegar a Itamar Assumpção, hoje, no Brasil. E difícil porque ele cometeu a ousadia de permanecer íntegro diante de um mercado cuja única preocupação é o consumo. É preciso dizer que, apesar dessa dificuldade, existe um público - por menor que seja fiel.
E essa minoria reconhece o valor de Itamar na MPB - sua obra é um passo adiante. Desde seu aparecimento, ninguém retomou o fio da meada, estancamos. E ele vem desenrolando o fio sozinho, lançando seus disco do jeito que dá, experimentando aqui e ali, realmente criando. Independente de qualquer coisa.
Hoje, 17 anos depois do lançamento de seu primeiro disco, o “Beleléu”, ele tem material suficiente para mais um LP duplo ou triplo ,e permanece na condição de semi-anonimato que lhe foi imposta. Malditos somos nós.
Souza 97


CAOS SAUDÁVEL
A proposta independente é estar fora do sistema. É complicada a sobrevivência... você segue ou você desiste. Eu sou compositor, tenho que carregar meus discos, minha casinha nas costas. Não interessa se eu não vou no Faustão, no Fantástico. Tem um dedicar a isso, senão não adianta. No Brasil é assim... Mas nos Estados Unidos, os pretos se juntaram e fizeram a Motown quando ficou difícil para eles. É diferente lá, não tem mistura, aqui tem. Não estou falando que o Itamar está fora porque é preto, não tem nada a ver. Estou fora porque quero estar, e falando isso o pessoal estranha. Eu não quero essa coisa aí de ficar vendendo um milhão de discos... Pra justificar tanta venda você tem que dar o retorno. E é muito desgastante. E a minha música não é para isso. Eu fico vendo o seguinte: eu gosto de tocar para 500 mil pessoas, mas 500 de cada vez. Aí é legal. Se você toca para 50, 60 mil pessoas, eles não vão ouvir aquele bandolim sutil pra cacete. Epa! onde eu vou entrar agora? Pra onde eu vou? Sei lá, rádio não toca... Tá, tem uma rádio que toca a minha música. Eu já estou muito avançado culturalmente, artisticamente, e esse é o problema do povo não receber sua cultura. Não é mais Gilberto Gil, não é mais Milton Nascimento, é isso, uma coisa fora, uma outra coisa que não é um movimento, é muito individual. Quando eu entendi que o Cartola ficou 25 anos lavando carros, é por causa disso, tem que estar no mercado. Então o cara vai fazer outra coisa. Eu não vou fazer outra coisa. Nem sair do Brasil. Claro que eu estou no país mais difícil do mundo, como os caras dizem na Alemanha, mas eu digo que é o Brasil. Aqui é qualquer coisa, aceitam qualquer coisa porque é imposto qualquer coisa. Nós que produzimos a música mais rica do mundo, o povo não recebe. É o caos, mas saudável. Essa mistureba toda. 

PEGA PRA CAPAR
Aqui entre nós três, como é que pode ter racismo? Com que cara vocês vão falar pra mim de racismo? Não tem jeito. Assim como se eu falar que vocês são brancos. Onde? Como? Eu sei que branco é europeu, é alemão, eu vi lá. Aquilo é que é branco. E que não mistura nem com suíço, do lado. Não gostam do outro. E isso acabou aqui no Brasil. A onda é essa. Partimos pra uma coisa nova. Lá é tudo velho, acabou. Não tem pra onde ir no sentido humano. Os caras nem afetividade mais tem, só cabeça. A convivência pesou entre raças. O peso do mundo sempre foi esse. Leva o escravo porque tem que levar, a mão de obra é zero. A economia é que manda. Mas aí muda pra indústria e a escravidão não precisa mais. É um pau, um pega pra capar porque não acabou a escravidão. Lá, o espacinho deste tamanho. Então pegam uma caravela e saem andando. E vem dar aqui no Brasil. E os índios estavam aqui viajandão, os caras chegam e: não! pára com isso! acabou essa história! cês tão muito sem roupa demais, Tupã não tem nada a ver... que é isso aí? Vão parar com essa zona... Até botarem fogo. Botar fogo é isso, é essa ignorância cultural. O não respeito. É disso que se trata. Minhas filhas nunca farão isso. Se fizerem, eu pego elas e queimo em praça pública. 

FEIJOADA
Olha bem, nós somos tão novos que eu não sou uma mistura. Nasci em 49. Se andar um pouquinho para trás estamos em 1800, em plena escravidão. Aí que eu digo que é novidade. Parece que a gente tem 3000 anos. Tem 500 e olhe lá. É difícil os caras entenderem que meu vínculo com a África é maior que com o Brasil. A minha cultura ainda é africana. Por exemplo, hoje comi feijoada. Fico muito tempo sem comer, bebo, fico maus - como feijoada. Porquê? Porque os caras inventaram isso. Os escravos precisavam comer uma coisa forte pra segurar o bagulho. Inventaram a feijoada. Virou prato. E eu sou casado com uma descendente de italiano, minhas filhas são mulatas. Aí já é Brasil. Elas são produto de duas culturas já. Isso é brasileiro. Eu não. Lá em casa não tem branco, não tem mulato. É tudo preto. Meu irmão casou com uma branca e tem filho mulato. Isso que os caras reclamam, falam branqueamento. Isso não é branqueamento. Eu não vou casar com preto para manter uma África no Brasil. Isso não existe, Brasil não é África. Brasil é uma mistura desse negócio. Eu como macarronada com feijoada. Convivo com descendentes de italiano que sabem fazer isso. E que os pretos sabem fazer? Música. É isso que eu faço. Sou especialista nisso. Por tradição.

ESSE É O NOME
E o nome Itamar. Meu avô que escolheu. Quando foi batizar lá na igreja, o padre falou que não porque era nome de bicho: escolham outro, José, João... Aí meu pai falou: não, é Itamar. Ficou Itamar. Hoje, o que eu vejo é que naquele momento o padre falou o seguinte: olha, isso daí é muçulmano. Itamar é muçulmano. É Maomé, então não é legal. Mas ele falou: isso aí é nome de bicho. Mas não explicou o que era. Aqui, recebe o nome do patrão - Assumpção é português. Meu nome de africano eu nem sei, nem me preocupo com isso. Não sou japonês, japonês sabe. Se for Nakamoto, é tudo Nakamoto, todo Nakamoto é parente. Mas o pessoal fala: ah, tem aquele cara lá, o Assumpção. Mas ele é branco, não é parente seu? Não tem a ver? Não entende culturalmente isso que eu tô falando. Eu carrego ainda o nome do senhor. Isso é Brasil, o negócio é rico. E faço questão de carregar meu nome. Esse é o nome, entende? Assumpção com p. 

ME ENSINA?
Meus amigos de infância falam: como é que você virou isso? Até 14 anos eu nunca dei razão pra se dizer que ia acontecer. Mas eu acho que é uma outra coisa: o tempo. Eu morava com meus avós porque falaram: ah, deixa aqui, vou criar... E toda uma cultura de Igreja Católica. Fiquei no grupo escolar Tietê, minha avó me colocou com cinco anos no grupo porque meu irmão tinha sete e ia pro 1° ano. Ela não queria separar os dois. Aos nove acabou. Eu não podia fazer ginásio, só com 11. Aí fiquei sozinho pela primeira vez. Um ano esperando para entrar no ginásio. Nesse ano, tive que me virar com o tempo. Nos primeiros dias foi difícil, chato, todo mundo ia pra escola. Daí comecei achar o jeito de lidar com o tempo. Eu já me interessava, queria entrar numa banda pra aprender tocar sopro, pistom. Tinha um cara que tocava tuba, violão, baixo e eu gostava de baixo, gostava de violão também. Falei: me ensina a tocar violão? O cara falou: ah, é fácil, qué vê? Pegou e fez. Então entendi o que ele falou. 

INDEPENDENTE
O pessoal já chega querendo ser independente, independente com grana, pagando disco e tal. O que eu estou falando é artisticamente. Sempre procurei independência artística primeiro, foi essa de não entrar em caminhos fáceis. E agora a independência financeira. Então, se alguém quiser comprar este peixe que nunca foi vendido, eu vendo para esse alguém e sou fiel. Sim, porque meu público sabe que chegou a hora deste negócio. Para mim se trata de ampliar meu espaço. Mas como? Ora bolas... por exemplo, agora vou lançar meu disco e tem um clip. Meu disco eu mesmo já faço, não preciso de gravadora, pronto. O clip eu ganhei de um amigo. O nome da música é “Porque Não Pensei Nisso Antes”. Eu não sei que rolo vai dar na MTV, mas eles vão ficar tocando lá. É legal que eu vou entrando no mercado devagarinho. A transa é essa. É justamente divulgar esse trabalho pra essa moçada. Essa que é a onda da MTV. E muita gente aqui nas periferias vê MTV. Quem conhece, conhece. Fora isso, o que eu tenho que fazer? Eu tenho que chegar e seduzir de cara. Não vai pensar muito não. Acabou a música: ah gostei desse negócio aí. Já de cara. Pá! Pum! Daí vai lá e vê a sua cultura onde está. Musical, artística. Dá uma olhada aí que você vai ver como lá pra trás tá cheio.

TEMPO
Então estou preferindo ver numa cidade um lugar pequeno e falar: Ah eu quero ficar três semanas aqui. Pronto, é isso, acabou. Não tô afim mais desse papo de tocar dois dias num lugar e sair voando pra outro. Tem um tempo pra mostrar meu trabalho que é imenso, intenso. Eu não sei mais o que eu faço porque é tudo novidade.

ARRIGO
A transa deveria ser: você ouvir só quem tem talento. Essa é que é a chatice, você ficar ouvindo quem não tem talento. Quando falo do Ataulfo, pra que eu vou fazer música? Pra que precisa? Acontece que a minha música está dando um passo. Tem o Ataulfo, depois vem o Tropicalismo, pulando umas etapas, e aí cai eu aqui. Um som assim, só eu que posso fazer isso. Já não é o Ataulfo, já não é nem o Gil. Então eu peguei o baixo e fui lá. Daí olhei pro meu lado e vi um caraibão, um caraíba bom: Arrigo Barnabé. Descendente de italiano, com aquele som lá de europeu e tal. Isso é brasileiro. Eu sou descendente de escravo, não quero saber de notas. Não agüento nota na minha frente. E aquele cara é nota até debaixo d’água. As partituras... Tempo tudo composto... Mas mesmo sendo compositor, sem a obrigação de ser músico, eu gosto de ser músico também. Só músico. Então fui tocar com o Arrigo pra aprender aquele negócio. Fui lá e fiz os arranjos pro Arrigo antes do “Beleléu”. Até que chegou a hora de gravar o “Beleléu”. Eu vi que se eu não entendesse de Arrigo, que modernidade é essa sua? A música popular já não é mais Caetano e Gil. Não é que seja Arrigo e Itamar, mas tem mais esses caras já. É dose, não é uma música que você vai dançar, vai curtir com a namorada. O negócio é ouvir o som. O Ataulfo é doce, eu sei. É tão difícil uma coisa quanto a outra. Mas isso é a música brasileira. Da minha música não vai ter jeito de falar mal. Essa possibilidade não existe. Eu cheguei com o “Beleléu”. O pessoal pergunta dos novos aqui, que estão surgindo agora. Eu falo: olha, o que tá, taí. Mas ninguém quer falar sobre esse assunto. A novidade é essa. A novidade é que tem um cara que canta Arrigo Barnabé como se cantasse Ataulfo Alves. Canta, rapaz. Eu toco Arrigo e canto Arrigo. 

VOCÊ VAI
E a história de ser músico veio quando eu conheci o Mautner. Fui tocar com ele como músico. E ele: tu compõe? Eu componho. Mostrei uma musiquinha pra ele. Ele falou: você vai cantar lá no meu show. Eu falei: não, não quero cantar não. Quero trabalhar só de músico. Não, você vai, cê vai, cê vai. Não, não quero. Aí chegou no meio do show, ele parou, fez aquele discurso dele lá, me jogou no negócio e saiu fora. E ontem, conheci um cara que me falou o seguinte: Sabe onde eu te vi? Num show do Equipe com o Jorge Mautner. O Mautner fazendo discurso pra apresentar você. Eu fui lá pra ver o Mautner. O cara pensando assim: Puta! Vem um chato aí e eu querendo ver o Mautner e ele vai largar um chato na minha orelha. Aí acabou, foi ali. 

BOTECO
Nossa cultura é oral também. O pai vai passando as coisas. A cultura da rua. Vivo em boteco jogando conversa fora. Às vezes o pessoal fala assim: é o Itamar aí? Porque tem aquela coisa: pô! mas o cara fica aqui e aqueles caras com carro, mansões, cinco milhões de discos... Primeiro acham que ele é besta, não tá com nada. Então eu falo: não vou sair daqui, não adianta encher meu saco. Vou ficar quieto no canto que eu quero ficar. Escolhi meu canto. Aí vai, vai... começam a entender. E o pessoal: você não pode mudar daqui. Porque não vai ter um Gilberto Gil na sua orelha assim num boteco, não vai ter um Caetano. Não vai mesmo. Eu tô aqui no meu boteco com a meninada, jogando truco. A minha cultura é essa, mas querem que você mude essa cultura. Não dá. Isso é loucura Então vá morar no Japão se você está achando ruim. 

FUTEBOL
Antes da música eu achava que ia ser jogador de futebol. Eu jogava atrás, na sobra dos caras ali, armando o jogo. Não sei porque fui lá pra frente e comecei a gostar de jogar do meio de campo pra lá. Virei centro-avante. E fazia gol toda hora. Meu irmão era ponta esquerda e cruzava toda hora. A gente azucrinava a defesa. E aí passou um técnico lá em Arapongas e falou: tem um amigo técnico da Portuguesa, você não quer ir pra lá? Quero! Larguei a escola lá e fui embora. Cheguei no Canindé, ficou uma semana chovendo pra cacete. No terceiro dia: epa! tem algo estranho aqui. Eu tinha 18 anos, com 30 já acabou. Me deu um pavor aquilo. Eu falei: isso não é pra mim. Era 68. Pelé, Rivelino, Gerson. Esses caras é que jogam bola. Não quero mais ficar aqui. Quando saiu um solzinho lá, fomos bater bola no campo e eu me arrastando. Porque o tesão dançou. Eu tinha tesão porque não tinha nenhum compromisso. Peguei um ônibus e voltei. Me perguntaram: mas porque que você não ficou? Eu não sabia explicar, não tinha um argumento claro e tal. Aí comecei a ver que era isso, a longevidade do negócio. Eu tô com 47 anos, jogar bola com 47 ia ser muito chato.
 
Que nem Pelé, ele foi com 15 anos pro Santos. Jogou a vida inteira dele lá, nunca vi o cara falando: eu quero ficar milionário, ir embora. Ao contrário, quando os caras quiseram vender, ele não quis. Duas vezes eles tentaram vender. E ficou até ir embora pro Cosmos, porque no meio da década de 70 a situação tava preta. O cara foi campeão do mundo mas tudo bem. Depois desanimou e foi embora. Resolveu ganhar dinheiro porque no Santos ele não ganhou. O Santos é que ganhou muito dinheiro e jogou tudo fora. Mas ele ficou lá jogando, amor puro. Isso sempre teve nos jogadores antigos.
Os cartolas são a política, mas a cultura, que não é política, é o seguinte: nós dois escravos, ele com uma maça, eu com uma espada. A gente é amigo lá na escola. Aí falam: ó, não pode ficar os dois aí. E temos que enfrentar um ao outro. Aquele jogo, aquele boxe lá, aquele futebol lá, era pro povo. A cultura humana é essa. A política entra no cartola dono dos escravos. Hoje não pode um matar o outro, mas é isso que significa. Tem um jogo humano que tem de sair de alguma forma e tem que ter regras pra sair. E futebol você pode dizer que tá tendo cada vez mais regras. Tá difícil pros caras esquentadinhos que batem em juiz. Isso aí não dá mais. Os caras levam sangue nos olhos. Mas jogavam no gol também. Pelé jogou no gol. Foi fazer gol e depois foi lá no gol e catou tudo. Tá louco! Fez mil gols. Não deixou pra ninguém, ninguém. Isso é brasileiro, não é preto, entendeu? É esse produto brasileiro que nasce lá pobre e faz a vida com os pés como eu faço com minhas mãos e minha garganta. Então Itamar é maldito e marginal, tudo, eles falam tudo menos isso, sobre isso.
 

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