José Muñoz é um exponente daquela escola argentina que, na década de Setenta, marcou com o preto e branco o mundo das HQ’s. Munõz vive hoje num apartamento com altos corredores marcados por luzes e sombras agudas, numa velha casa em Milão.
Conversamos por quarenta minutos ao telefone: eu, no meu italiano abrasileirado, ele, com seu espanhol grave, italianizado. Saiu o retrato de um artista ligado à essência do seu trabalho, apesar das dificuldades do mercado editorial.
Como começou a mexer com quadrinhos?
Sempre gostei, desde muito pequeno, intuir a complexidade das paisagens rarefeitas e as angulações divinas que a mistura da palavra com o desenho pode comportar. Me senti atraído instantaneamente pelo richiamo1, depois disto naveguei quarenta anos nesta linguagem, muito tempo...
Você freqüentou o curso de quadrinhos da Escola Panamericana de Arte Argentina...
Sim, esteve lá com Dominguez, Bozzofi e Breccia como professores. Breccia era o professor da escola de desenho em preto e branco, estudava-se anatomia, faziam-se exercicios de ditar um sceneggiatura2 em imagens. Ali estava também Pratt mas eu não o tive diretamente como professor pois ele tinha acabado alguns meses antes de eu começar. De qualquer forma eu sou um prattiano matinal3.
Os primeiros trabalhos publicados são desta época?
Sim, trabalhei numa editora que funcionava numa modesta casa do bairro de Barraca. Gostaria de tocar aqueles ambientes com meus desenhos. Um rapaz tinha montado uma revista que se chamava Rapidoso, e eu comecei a trabalhar pela pequena editora. Ele escreveu uma história de cow-boys, o seja, os vaqueiros estadunidenses e eu realizei uma coisa meio surreal, de fato eu tinha os meus 16 anos...
A influência de Breccia e Pratt então foi à base do seu traço ‘expressionista’?
Digamos que com Breccia e Pratt eu tive abertas duas janelas muito grandes, através das quais eu cheguei em outras janelas e outras janelas ainda. Eu acho que as janelas que podemos trazer é um caminho que há dentro de cada um de nós. Acho que a linha de Pratt pode ser definida expressiva. No preto e branco e nos contrastes de luz e sombra trabalhou muito mais Breccia, sobre este versante expressionista, se assim convencionamos chamar toda aquela corrente artística que vai do começo do século até os anos trinta e da qual eu gosto muito. Vejo que eles viam, enfim.
Como foi o encontro com o roteirista Carlos Sampayo?
Com Carlos nós conhecemos na Espanha, em ’74. Foi através de um amigo comum que morava em Londres e intuiu que poderíamos fazer alguma coisa juntos. Foi uma amizade instantânea e apesar de não trabalharmos juntos há cinco anos não perdemos a esperança. Minha mudança para a Europa se deve fundamentalmente a uma necessidade de trabalho. O desejo de me aventurar em outras realidades porém era muito forte, queria ver outros desenhos reais: outros países... e o desenho de outros países. Queria descer ao desenho de coisas diferentes, queria viajar no sentido curioso do termo e este trabalho o permite.
As referências culturais deste pais antigo que é a Europa como te influenciaram?
Não posso exclui-lo, mas de qualquer maneira não tenho a contraprova de como teria me desenvolvido no meu país, admitindo que as condições econômicas o tivessem permitido. Nos últimos trinta anos aconteceram muitas surpresas na vida, boas, ruins... e isto muda também o desenho. As vezes acho que há um tremor particular dentro de cada desenho, vai se transformando de acordo com a experiência de ser humano dia após dia neste contexto um pouco caótico e arcaico. Este país no qual eu vivo, assim como os países vizinhos são um pouco como as casas dos tios para nós argentinos, daqueles tios até simpáticos então... Mexi-me um pouco neste minúscula bola de barro que se chama terra, isso é o que eu fiz.
Você desenha historias de outros autores. Costuma intervir nos roteiros?
Com Sampayo fundamentalmente ele escrevia e eu desenhava, porém depois ele entrava na minha área e eu na dele, talvez mais eu na dele, pois tínhamos que estar de acordo sobre o conteúdo, tínhamos de encontrar algo que divertisse a ambos e nos divertíamos em mesclar as nossas visões. Vê-se um pouco uma mistura harmônica na nossa colaboração. Desde ’92 (ele esteve muito doente até ’94) interrompemos o trabalho junto. Eu desenhei outras histórias com outros escritores e agora estou fazendo um segundo trabalho com o escritor norte-americano Jerom Charim. É um conto pela Casterman, a transposição em quadrinhos de um romance que se chama Pannamaria. Em ’96 fizemos também uma outra história que se passa nas américas e que em Italiano deve-se chamar O canino do serpente... Pelos contos compridos sempre trabalhei com escritores. Crítica social e antropológica, autocrítica através dos outros e todas aquelas piruetas que podemos fazer dentro daquele parque de diversões que é a palavra e o signo.
Faço imagens mudas, acho que são muito narrativas. Isoladas, em cores, as exponho e às vezes consigo também abrir uma série de janelas em direção à expressão das imagens por figuras. Gosto muito da possibilidade de isolar as imagens, não no sentido ruim da palavra, não quero isolar por isolar, mas sinto um pouco que a história real falta de sceneggiatura, que há muitos personagens sem diálogos e que não pertencem à sceneggiatura da história, são para poucos leitores e brincando nestes esfumados você pode dar um pouco de vida a este tipo de pensamentos, a estas imagens que te assalem. Tento de colocar os desenhos vagantes que tenho dentro, tento de colocá-los dentro estruturas que propõem narrar como colaboração. Você vai colocando suas obsessões.
O desenhista faz um trabalho de introspeção das imagens? Estas surgem de dentro ou são gravadas do mundo objetivo?
Nós somos um olho que pensa, que olha para dentro ou para fora. Não há uma precisa fronteira neste caos delirante que é a vida, pois alguém com esta particular obsessão, desejo, tem talvez a capacidade de dar vida às coisas desenhando. Eu acho que é um caminho assim, também de investigação interna, de nirvana, de sortudo passatempo4 para atravessar as penúrias do mundo, o que não quer dizer que um tenha que se esconder nos traços, mas um tranqüilizante, um calmante é sempre necessário quando você olha a realidade na cara.
A possibilidade de tocar no fundo os leitores vem da capacidade do desenhista de olhar profundamente dentro de si?
A possibilidade, o desejo, a condenação... as coisas deveriam ser feitas sempre o melhor que se pode. Quando alguém lança histórias ao mundo é um trem complicadíssimo, os desenhos são uma representação de quem os tem feito, com a elaboração de uma linguagem feita por homens. Esta é a viagem das impressões que você vai recebendo.
Esta visão mais subjetiva do quadrinho autoral como se incaixa na realidade do mercado? Hoje este tipo de revista está sumindo...
Somos uma espécie que viu seu campo pegar fogo nos últimos 7-8 anos. Além disto há uma progressiva dificuldade das gerações que chegam a acessar à linguagem dos quadrinhos, porque tem outras coisas que talvez os impeçam de gozar deste prazer quieto, imóvel do escorrer das histórias com desenhos e palavras... mas podemos nos queixar contra este destino cínico e avarento, podemos continuar a fazer. Eu sou também perplexo quando falo com pessoas que querem fazer este tipo de trabalho, devo adverti-los das nuvens negras, Não é dito que você tenha que se fixar que este trabalho tenha que te dar o que comer. Chegamos a situações praticamente artísticas, no sentido bom da palavra. O amor pela arte tem que sair se você tem a tentação de contar coisas nesta linguagem mesmo quando o vento sopra contra. Digamos que para o nosso tipo de conto, agora com Sampayo seria difícil propor uma coisa que as editoras acham que venderá menos de 10.000 exemplares. Nos álbuns na França, por exemplo, as coisas estão se nivelando através da exclusão dos autores que vendem menos. Estas histórias não foram feitas olhando à venda. Com Sampayo as histórias sempre vieram dentro de nós, num momento particular e é uma parte arriscada do nosso trabalho mas que o faz gozável, no sentido profundo do termo, pois conseguem um pouco fixar as impressões do passar do tempo, talvez também através destas precisações. Assim em quem o olha, e depois em quem o olha para ver que tipo de caminho pode empreender naquele universo do desenho e da palavra, há tremores humanos que nos acompanham há séculos. Eu acho que somos um pouco dinossauros, é a última escrita manual que consegue ser impressa, não sei por quanto tempo! Aquilo é uma caligrafia. Os nossos estilos são caligrafias da alma, aquilo que bate dentro de nós, aquele imenso caos de interinfluências, tendências de vida, ou seja todo o caos da criação e de frutos temporâneos numa série de ‘ências’.
Talvez a educação pode ser uma opção para o quadrinho autoral?
Educação em que sentido? Sempre é educação se você faz quadrinhos e os faz bem...
Entendo a educação escolar, no sentido de romances históricos em quadrinhos que possam oferecer através do desenho e do texto uma referência mais profunda e estimulante para os alunos que as vezes estudam em livros pouco interessantes.
Quando se faz um filme, principalmente, um livro ou uma biografia inventada por um escritor de um personagem histórico estas coisas podem ser feitas. Você pega um pouco o caráter da história, marcando o momento adaptado à sua figura, se considerar que por estas razoes seja possível ser... mas deve vir de dentro porque geralmente quando se fazem coisas didascalicas5 estas cumprem sua função... tá bom, você ganha um pouco mas é o conto de um personagem histórico nas mãos de fábricas de lingüiça, coisas meio dozinais6, simplistas ou seja, algo muito didascalico. Mas não é dito que você não possa fazer coisas muito lindas. Bom, aquilo que fizemos com Sampayo, por exemplo, quando fizemos a Billie Holiday, pegamos uma pessoa muito querida, pois sua voz é como uma pessoa para nós e a pessoa que tinha por trás nos deixou apaixonados ao máximo pelo seu talento e agradecidos fizemos uma história próxima e distante ao mesmo tempo à sua vida real, fizemos uma espécie de versos, de diferentes brani7 musicais. Sampayo com as palavras e eu com os desenhos. Toda aquela história é um brano musical desenhado. Todas estas coisas por baixo quando se misturam os diferentes filmes da linguagem, quando vem um pouco a vertigem, o tordeziño8 o remoinho das línguas que se misturam ... parte integrante da nossa identidade, uma entidade muito móvel... Para falar destas coisas tento sempre de fazer sair a pessoa que está por trás do desenho e da palavra, eu tento fazer coisas vivas.
A música sempre foi presente em teus quadrinhos: em ‘Alack Sinner’ há uma citação a Gato Barbieri, e ainda há histórias como a da ‘Billie Holiday’ e ‘O trompete do diabo’ do Batman Black & White. Como passar no quadrinho uma sensação parecida com a da música?
Acho que é um pouco aquele arrepio nas costas que me dá um acorde musical, a passagem de uma sfumatura9 para outra numa pintura, num desenho riuscito10, um pescoço que crio, uma expressão válida que crio e que casa com aquele pescoço quando há uma paisagem na qual as arvores são tremulantes, fremindo no espirito de quem os desenhou. Quando você entra assim no estado do movimento, ali você alcança, como dizer, através da exploração da linguagem... acho que neste caso a música se alcança num contraste particular, acho que numa pincelada do Pratt ou num traço do Breccia eu posso encontrar um acorde musical conseguido. A música do Pratt são as luzes e as sombras, alí e dentro. Logo quando nós fazíamos a Billie Holiday havia como uma orquestra que batia dentro de nós ao ritmo da sua música, nós éramos levados pelo seu ritmo. Pelas diferentes linguagens que temos em nós podemos individuá-lo.
Em teus desenhos é a sombra que revela a luz, ou a luz à sombra? Ou é um dialogo?
Acho que é um diálogo. Geralmente começo com os traços de pena, mas há vezes que começo a manchar, depende do que vejo. O olho quer, mas as vezes sente a influência como acontece na famosa realidade.
Você realizou poucos trabalhos em cores, eu vi um episódio de Alack Sinner, ‘Norte-americanos’, talvez colorizado posteriormente e uma vibrante capa da revista ‘El Víbora’ pela história ‘Outono e Primavera’. Você prefere realizar histórias em preto e branco?
Prefiro ambos, um é o antídoto do outro... eu vou fugindo, sou um fugitivo (risos) e vado alla macchia dentro de mim... na verdade recorro aos dois por razões alternadas, como as vezes prefiro começar a fumettare11 sabendo de onde parto mas não aonde vou chegar. Às vezes você pode trabalhar numa história que tenha já o desenvolvimento definido, outra é apenas um canovaccio12. Você vai buscando coisas alternadas na vida, depois você escapa da rigidez, da estrutura preconcebida e se joga nas águas do quadrinho navegando sei lá para onde. Mas ambas estas coisas são muito atraentes. Eu faço uma familiaridade entre cor, preto e branco e história pronta para ser posta em imagens, outras vezes preciso fazer coisas verdadeiras, como estou fazendo histórias muito compridas para ter a possibilidade de fazer algo de finito cada dois ou três dias, pois se perdem os meses com as histórias sem limites com as páginas que lentamente vêm a luz, aí vou buscar também idéias que me assaltam, desenhos que depois desenvolvo... acho que tudo isto é o resultado da fecundação necessária entre uma coisa e outra, de suas necessidades internas e também da possibilidade a respeito do mundo externo, a famosa realidade, de ter possibilidade de fazer coisas diferentes.
Há um momento, principalmente nas histórias compridas, no qual a ficção chega a afetar a realidade, extrapolando os limites da página? Lembra alguma em particular?
Aquilo que inconscientemente acho que sempre tentamos fazer foi pular fora da página, chegar a fazer aquilo que escrevia Oesterheeld, quando eu comecei a publicar histórias roterizadas por Oesterheeld, tinha 17 anos, algum ano depois daquela experiência que contei antes, comecei a ter trabalho com ele, que não fazia nenhuma restrição visual, ou quase, colocando de vez em quando o caráter ‘mira al lector’. Podemos dizer que nossos trabalhos tentam ser um olhar ao leitor quando você cruza o olhar com alguém e se produz aquele desejo que não seja apenas papel, que não seja apenas um trabalho de preencher as páginas chatas, falando com respeito, mas sem vida, sem envolvimento pessoal do autor com a história que está contando, sem um investimento emotivo.
As perspectivas para o futuro. Algum trabalho para ser realizado? Um sonho na gaveta?
Sonhos, sim! No caso do desenho poder realizar um trabalho que retrate uma parte do meu país, um aspecto particular da Argentina no sentido europeístico cosmopolita, gosto daquela parte do meu país que não se perdeu completamente, que mantém aquela sua multi-origem que você encontra lá como aí no Brasil, mas com outra temperatura, com outra mistura, com um outro resultado no sentido estético, glorioso ... que é a multiplicidade dos nossos países. Tenho que fazer uma série de imagens argentinas a dois ou três cores para um livrinho que vai sair. Me dá muito prazer pensar que me espera.
Sempre gostei, desde muito pequeno, intuir a complexidade das paisagens rarefeitas e as angulações divinas que a mistura da palavra com o desenho pode comportar. Me senti atraído instantaneamente pelo richiamo1, depois disto naveguei quarenta anos nesta linguagem, muito tempo...
Você freqüentou o curso de quadrinhos da Escola Panamericana de Arte Argentina...
Sim, esteve lá com Dominguez, Bozzofi e Breccia como professores. Breccia era o professor da escola de desenho em preto e branco, estudava-se anatomia, faziam-se exercicios de ditar um sceneggiatura2 em imagens. Ali estava também Pratt mas eu não o tive diretamente como professor pois ele tinha acabado alguns meses antes de eu começar. De qualquer forma eu sou um prattiano matinal3.
Os primeiros trabalhos publicados são desta época?
Sim, trabalhei numa editora que funcionava numa modesta casa do bairro de Barraca. Gostaria de tocar aqueles ambientes com meus desenhos. Um rapaz tinha montado uma revista que se chamava Rapidoso, e eu comecei a trabalhar pela pequena editora. Ele escreveu uma história de cow-boys, o seja, os vaqueiros estadunidenses e eu realizei uma coisa meio surreal, de fato eu tinha os meus 16 anos...
A influência de Breccia e Pratt então foi à base do seu traço ‘expressionista’?
Digamos que com Breccia e Pratt eu tive abertas duas janelas muito grandes, através das quais eu cheguei em outras janelas e outras janelas ainda. Eu acho que as janelas que podemos trazer é um caminho que há dentro de cada um de nós. Acho que a linha de Pratt pode ser definida expressiva. No preto e branco e nos contrastes de luz e sombra trabalhou muito mais Breccia, sobre este versante expressionista, se assim convencionamos chamar toda aquela corrente artística que vai do começo do século até os anos trinta e da qual eu gosto muito. Vejo que eles viam, enfim.
Como foi o encontro com o roteirista Carlos Sampayo?
Com Carlos nós conhecemos na Espanha, em ’74. Foi através de um amigo comum que morava em Londres e intuiu que poderíamos fazer alguma coisa juntos. Foi uma amizade instantânea e apesar de não trabalharmos juntos há cinco anos não perdemos a esperança. Minha mudança para a Europa se deve fundamentalmente a uma necessidade de trabalho. O desejo de me aventurar em outras realidades porém era muito forte, queria ver outros desenhos reais: outros países... e o desenho de outros países. Queria descer ao desenho de coisas diferentes, queria viajar no sentido curioso do termo e este trabalho o permite.
As referências culturais deste pais antigo que é a Europa como te influenciaram?
Não posso exclui-lo, mas de qualquer maneira não tenho a contraprova de como teria me desenvolvido no meu país, admitindo que as condições econômicas o tivessem permitido. Nos últimos trinta anos aconteceram muitas surpresas na vida, boas, ruins... e isto muda também o desenho. As vezes acho que há um tremor particular dentro de cada desenho, vai se transformando de acordo com a experiência de ser humano dia após dia neste contexto um pouco caótico e arcaico. Este país no qual eu vivo, assim como os países vizinhos são um pouco como as casas dos tios para nós argentinos, daqueles tios até simpáticos então... Mexi-me um pouco neste minúscula bola de barro que se chama terra, isso é o que eu fiz.
Você desenha historias de outros autores. Costuma intervir nos roteiros?
Com Sampayo fundamentalmente ele escrevia e eu desenhava, porém depois ele entrava na minha área e eu na dele, talvez mais eu na dele, pois tínhamos que estar de acordo sobre o conteúdo, tínhamos de encontrar algo que divertisse a ambos e nos divertíamos em mesclar as nossas visões. Vê-se um pouco uma mistura harmônica na nossa colaboração. Desde ’92 (ele esteve muito doente até ’94) interrompemos o trabalho junto. Eu desenhei outras histórias com outros escritores e agora estou fazendo um segundo trabalho com o escritor norte-americano Jerom Charim. É um conto pela Casterman, a transposição em quadrinhos de um romance que se chama Pannamaria. Em ’96 fizemos também uma outra história que se passa nas américas e que em Italiano deve-se chamar O canino do serpente... Pelos contos compridos sempre trabalhei com escritores. Crítica social e antropológica, autocrítica através dos outros e todas aquelas piruetas que podemos fazer dentro daquele parque de diversões que é a palavra e o signo.
Faço imagens mudas, acho que são muito narrativas. Isoladas, em cores, as exponho e às vezes consigo também abrir uma série de janelas em direção à expressão das imagens por figuras. Gosto muito da possibilidade de isolar as imagens, não no sentido ruim da palavra, não quero isolar por isolar, mas sinto um pouco que a história real falta de sceneggiatura, que há muitos personagens sem diálogos e que não pertencem à sceneggiatura da história, são para poucos leitores e brincando nestes esfumados você pode dar um pouco de vida a este tipo de pensamentos, a estas imagens que te assalem. Tento de colocar os desenhos vagantes que tenho dentro, tento de colocá-los dentro estruturas que propõem narrar como colaboração. Você vai colocando suas obsessões.
O desenhista faz um trabalho de introspeção das imagens? Estas surgem de dentro ou são gravadas do mundo objetivo?
Nós somos um olho que pensa, que olha para dentro ou para fora. Não há uma precisa fronteira neste caos delirante que é a vida, pois alguém com esta particular obsessão, desejo, tem talvez a capacidade de dar vida às coisas desenhando. Eu acho que é um caminho assim, também de investigação interna, de nirvana, de sortudo passatempo4 para atravessar as penúrias do mundo, o que não quer dizer que um tenha que se esconder nos traços, mas um tranqüilizante, um calmante é sempre necessário quando você olha a realidade na cara.
A possibilidade de tocar no fundo os leitores vem da capacidade do desenhista de olhar profundamente dentro de si?
A possibilidade, o desejo, a condenação... as coisas deveriam ser feitas sempre o melhor que se pode. Quando alguém lança histórias ao mundo é um trem complicadíssimo, os desenhos são uma representação de quem os tem feito, com a elaboração de uma linguagem feita por homens. Esta é a viagem das impressões que você vai recebendo.
Esta visão mais subjetiva do quadrinho autoral como se incaixa na realidade do mercado? Hoje este tipo de revista está sumindo...
Somos uma espécie que viu seu campo pegar fogo nos últimos 7-8 anos. Além disto há uma progressiva dificuldade das gerações que chegam a acessar à linguagem dos quadrinhos, porque tem outras coisas que talvez os impeçam de gozar deste prazer quieto, imóvel do escorrer das histórias com desenhos e palavras... mas podemos nos queixar contra este destino cínico e avarento, podemos continuar a fazer. Eu sou também perplexo quando falo com pessoas que querem fazer este tipo de trabalho, devo adverti-los das nuvens negras, Não é dito que você tenha que se fixar que este trabalho tenha que te dar o que comer. Chegamos a situações praticamente artísticas, no sentido bom da palavra. O amor pela arte tem que sair se você tem a tentação de contar coisas nesta linguagem mesmo quando o vento sopra contra. Digamos que para o nosso tipo de conto, agora com Sampayo seria difícil propor uma coisa que as editoras acham que venderá menos de 10.000 exemplares. Nos álbuns na França, por exemplo, as coisas estão se nivelando através da exclusão dos autores que vendem menos. Estas histórias não foram feitas olhando à venda. Com Sampayo as histórias sempre vieram dentro de nós, num momento particular e é uma parte arriscada do nosso trabalho mas que o faz gozável, no sentido profundo do termo, pois conseguem um pouco fixar as impressões do passar do tempo, talvez também através destas precisações. Assim em quem o olha, e depois em quem o olha para ver que tipo de caminho pode empreender naquele universo do desenho e da palavra, há tremores humanos que nos acompanham há séculos. Eu acho que somos um pouco dinossauros, é a última escrita manual que consegue ser impressa, não sei por quanto tempo! Aquilo é uma caligrafia. Os nossos estilos são caligrafias da alma, aquilo que bate dentro de nós, aquele imenso caos de interinfluências, tendências de vida, ou seja todo o caos da criação e de frutos temporâneos numa série de ‘ências’.
Talvez a educação pode ser uma opção para o quadrinho autoral?
Educação em que sentido? Sempre é educação se você faz quadrinhos e os faz bem...
Entendo a educação escolar, no sentido de romances históricos em quadrinhos que possam oferecer através do desenho e do texto uma referência mais profunda e estimulante para os alunos que as vezes estudam em livros pouco interessantes.
Quando se faz um filme, principalmente, um livro ou uma biografia inventada por um escritor de um personagem histórico estas coisas podem ser feitas. Você pega um pouco o caráter da história, marcando o momento adaptado à sua figura, se considerar que por estas razoes seja possível ser... mas deve vir de dentro porque geralmente quando se fazem coisas didascalicas5 estas cumprem sua função... tá bom, você ganha um pouco mas é o conto de um personagem histórico nas mãos de fábricas de lingüiça, coisas meio dozinais6, simplistas ou seja, algo muito didascalico. Mas não é dito que você não possa fazer coisas muito lindas. Bom, aquilo que fizemos com Sampayo, por exemplo, quando fizemos a Billie Holiday, pegamos uma pessoa muito querida, pois sua voz é como uma pessoa para nós e a pessoa que tinha por trás nos deixou apaixonados ao máximo pelo seu talento e agradecidos fizemos uma história próxima e distante ao mesmo tempo à sua vida real, fizemos uma espécie de versos, de diferentes brani7 musicais. Sampayo com as palavras e eu com os desenhos. Toda aquela história é um brano musical desenhado. Todas estas coisas por baixo quando se misturam os diferentes filmes da linguagem, quando vem um pouco a vertigem, o tordeziño8 o remoinho das línguas que se misturam ... parte integrante da nossa identidade, uma entidade muito móvel... Para falar destas coisas tento sempre de fazer sair a pessoa que está por trás do desenho e da palavra, eu tento fazer coisas vivas.
A música sempre foi presente em teus quadrinhos: em ‘Alack Sinner’ há uma citação a Gato Barbieri, e ainda há histórias como a da ‘Billie Holiday’ e ‘O trompete do diabo’ do Batman Black & White. Como passar no quadrinho uma sensação parecida com a da música?
Acho que é um pouco aquele arrepio nas costas que me dá um acorde musical, a passagem de uma sfumatura9 para outra numa pintura, num desenho riuscito10, um pescoço que crio, uma expressão válida que crio e que casa com aquele pescoço quando há uma paisagem na qual as arvores são tremulantes, fremindo no espirito de quem os desenhou. Quando você entra assim no estado do movimento, ali você alcança, como dizer, através da exploração da linguagem... acho que neste caso a música se alcança num contraste particular, acho que numa pincelada do Pratt ou num traço do Breccia eu posso encontrar um acorde musical conseguido. A música do Pratt são as luzes e as sombras, alí e dentro. Logo quando nós fazíamos a Billie Holiday havia como uma orquestra que batia dentro de nós ao ritmo da sua música, nós éramos levados pelo seu ritmo. Pelas diferentes linguagens que temos em nós podemos individuá-lo.
Em teus desenhos é a sombra que revela a luz, ou a luz à sombra? Ou é um dialogo?
Acho que é um diálogo. Geralmente começo com os traços de pena, mas há vezes que começo a manchar, depende do que vejo. O olho quer, mas as vezes sente a influência como acontece na famosa realidade.
Você realizou poucos trabalhos em cores, eu vi um episódio de Alack Sinner, ‘Norte-americanos’, talvez colorizado posteriormente e uma vibrante capa da revista ‘El Víbora’ pela história ‘Outono e Primavera’. Você prefere realizar histórias em preto e branco?
Prefiro ambos, um é o antídoto do outro... eu vou fugindo, sou um fugitivo (risos) e vado alla macchia dentro de mim... na verdade recorro aos dois por razões alternadas, como as vezes prefiro começar a fumettare11 sabendo de onde parto mas não aonde vou chegar. Às vezes você pode trabalhar numa história que tenha já o desenvolvimento definido, outra é apenas um canovaccio12. Você vai buscando coisas alternadas na vida, depois você escapa da rigidez, da estrutura preconcebida e se joga nas águas do quadrinho navegando sei lá para onde. Mas ambas estas coisas são muito atraentes. Eu faço uma familiaridade entre cor, preto e branco e história pronta para ser posta em imagens, outras vezes preciso fazer coisas verdadeiras, como estou fazendo histórias muito compridas para ter a possibilidade de fazer algo de finito cada dois ou três dias, pois se perdem os meses com as histórias sem limites com as páginas que lentamente vêm a luz, aí vou buscar também idéias que me assaltam, desenhos que depois desenvolvo... acho que tudo isto é o resultado da fecundação necessária entre uma coisa e outra, de suas necessidades internas e também da possibilidade a respeito do mundo externo, a famosa realidade, de ter possibilidade de fazer coisas diferentes.
Há um momento, principalmente nas histórias compridas, no qual a ficção chega a afetar a realidade, extrapolando os limites da página? Lembra alguma em particular?
Aquilo que inconscientemente acho que sempre tentamos fazer foi pular fora da página, chegar a fazer aquilo que escrevia Oesterheeld, quando eu comecei a publicar histórias roterizadas por Oesterheeld, tinha 17 anos, algum ano depois daquela experiência que contei antes, comecei a ter trabalho com ele, que não fazia nenhuma restrição visual, ou quase, colocando de vez em quando o caráter ‘mira al lector’. Podemos dizer que nossos trabalhos tentam ser um olhar ao leitor quando você cruza o olhar com alguém e se produz aquele desejo que não seja apenas papel, que não seja apenas um trabalho de preencher as páginas chatas, falando com respeito, mas sem vida, sem envolvimento pessoal do autor com a história que está contando, sem um investimento emotivo.
As perspectivas para o futuro. Algum trabalho para ser realizado? Um sonho na gaveta?
Sonhos, sim! No caso do desenho poder realizar um trabalho que retrate uma parte do meu país, um aspecto particular da Argentina no sentido europeístico cosmopolita, gosto daquela parte do meu país que não se perdeu completamente, que mantém aquela sua multi-origem que você encontra lá como aí no Brasil, mas com outra temperatura, com outra mistura, com um outro resultado no sentido estético, glorioso ... que é a multiplicidade dos nossos países. Tenho que fazer uma série de imagens argentinas a dois ou três cores para um livrinho que vai sair. Me dá muito prazer pensar que me espera.
2 Sceneggiatura: cenografia narrativa, story-board.
3 Prattiano matinal: discípulo de Hugo Pratt.
4 Passatempo: uma forma de passar o tempo, como os jogos com baralho.
5 Didascálicas: de didascalia, legenda. Texto que aparece no quadro.
6 Dozinais: que se vende à dúzia. A quantidade frente à qualidade.
7 Brani: parte de uma música.
8 Tordeziño: torvelinho.
9 Sfumature: de sfumato, esfumado.
10 Riuscito: conseguido, bem sucedido.
11 Fumettare: fazer fumetti, ou seja, quadrinhos.
12 Canovaccio: pano, papel onde é rabiscado o esboço de uma história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário