Foi no dia da Independência do Brasil que batemos na sua casa, no Rio. Ele jogou um estalinho pela janela e: Viva o Brasil! Aí vieram as histórias, a infância, o aprendizado, os amigos, cinema e sempre a música. Música que vem de dentro, do osso e do nervo. E entre uma música no violão, risos e lágrimas, desvelou-se um homem apaixonado e um grande compositor.
Eu nasci no dia 3 de março de 1943, 3 do 3 de 43, numa terça feira gorda de carnaval, em pleno baticum de carnaval e de samba. A memória que eu tenho de música são os cantos da minha mãe que canta muito bem. Vivi cercado por música o tempo inteiro. Mas nunca pensei em ser músico até que mudamos da Tijuca para Ipanema, rua Visconde de Pirajá. Eu tinha uma vizinha que estudava violão na cozinha, no mesmo andar. E deixava a porta entreaberta dos corredores de cozinha para cozinha de apartamentos.
E aí eu ouvia e ficava olhando ali pela fresta, aprendendo aquelas coisas. As posições da vizinha! Depois que ela terminava a aula, eu pedia o violão emprestado e ia fazer as posições que tinha visto por ali e tal.
Eu morava no sexto andar e do edifício gêmeo saía um som pela janela. E ficava na janela olhando o mar, ouvindo e nunca via quem tocava aquele som.. Um dia, o Chiquinho Araújo me convidou pra ir na casa dele. Fui e descobri quem fazia aquele som: era o Severino Araújo, (grande músico e maestro da orquestra Tabajara) sentado na poltrona, estudando clarinete. Só que os estudos eram maravilhosos! Comecei a frequentar e ele começou a me mostrar as bandas de jazz, Duke Ellington, me mostrou Villa Lobos, Stan Kenton. Ele ia tocando os discos, me mostrando e eu interessado naquilo, ficava... Daí um dia ele disse: você ama música? Eu era garoto de doze anos e disse: amo. Então você vai ser copista da Orquestra Tabajara. Copista quer dizer você copiar todos os arranjos de partituras para cada instrumento. Copiava todas aquelas notas e aprendi a ler e a escrever. Levava pra Rádio Nacional, distribuía as partituras pros músicos e sentava sozinho e ouvia a sonoridade de cada nota que eu tinha escrito. E disse: é esse o aprendizado! Anos depois, pedi ao maestro Edino Krieger, diretor da Orquestra Sinfônica Brasileira, para ser copista da Orquestra Sinfônica Brasileira. Aí aprendi o conjunto sinfônico.
Aí fizemos um primeiro grupo chamado 'Os dois no balanço', o Chiquinho Araújo que gostava de bateria e eu. Armamos a bateria no meu quarto e, como ocupava todo o quarto e tinha um armário, eu tocava violão em cima do armário. Até que conheci o João Vianna, uma pessoa talentosíssima, então fizemos 'Os três no balanço'. Porque o balanço aumentava. Era dois no balanço, entrava outro e três no balanço, quatro no balanço, cinco, seis, sete no balanço. Quanto mais entrava gente, era mais um no balanço. E a gente formou um grupo de música que imitava Sérgio Mendes, a Bossa Nova.
Na Visconde de Pirajá, ao lado do meu edifício, tinha uma churrascaria chamada Churrascaria Pirajá. Fizeram por ali também a TV Excelsior. Então todos aqueles artistas iam lá. E indo e vindo na churrascaria, comecei a conhecer algumas pessoas como Grande Otelo, Vinícios de Moraes, Ciro Monteiro, Elizete Cardoso, Sérgio Porto (o Stanislau Ponte Preta), Tom Jobim, Baden Powell. Ficava aquela patota por ali. E eu ficava por ali também, pegando o violão, arranhando daqui-ali, aprendendo um acorde daqui-ali naquela conversa maluca. E minha mãe apavorada que me via chegando em casa meio tonto de um choppinho só. O porre de um chopp só. Aí uma vez eu demorei demais, ela desceu: - Meu filho você não pode ficar! Fez um pequeno escândalo, de mãe, né? - Você tem que ir pra casa, brsfngngnjst!!!!!! Aí o Grande Otelo disse: - Minhha xsenhora, desxsculpe. É a mãe do rapazz? - Como é o nome da sua mãe? Eu disse: Lygia. -Dona Lygia, ele esxxtá com a naata da arrte brasileira, a ssenhora não se prreocupe. Queria te apresentarr, porr exempllo, o poeta Vinicioss dje Moraijxs. Aí o Vinícios - Âhhnn. - O maexxxtrro Antônio Carrloxx Jjiobim. O esxcrritorr Sxtanixxlau Pontje Preta. O violonissxta Baden Powel. E o Baden apagado em cima do violão. E a 'fina flor' era um bando de loucos maravilhosos. Minha mãe que tinha uma sensibilidade artística muito grande, apesar da preocupação, disse: - Tudo bem, mas daqui a meia hora em casa. Só que eu sumia. Lá ia eu com o Nelson do Cavaquinho, Ciro Monteiro, ia pra porra da gandaia. Sumia duas, três noites. Aparecia. Ia deixando um por um. Ia bebendo do Leblon, pela Visconde de Pirajá afora até deixar o Nelson do Cavaquinho láááá no subúrbio. Acabava no Largo do Machado, com o Ciro Monteiro deitado no chão, de perna cruzada, batucando caixa de fósforo pro teto. Então essa é a minha escola....
Em 63, eu conheci o Torquato Neto. Um dia, a gente tava ensaiando lá em casa 'Os seis no balanço', aparece o Torquato trazendo Caetano. Eles sentaram e ficaram ouvindo aquele grupo imitando Sérgio Mendes, um pouco misturado com João Gilberto, misturado com aquela Bossa Nova toda. Depois do ensaio a gente conversou e aí ele falou: hoje, lá na Bahia, a gente tá tentando fazer música, com algumas pessoas, numseiquê. Mostra uma música então. Aí Caetano tocou: 'E o galo cocorocou' (canta) Eu fiquei fascinado. Puxa, olha que bonito esse cara fazendo essa música. E trocamos afetos e amizades. (Uma sirene interrompe, Macalé faz uma careta e diz: Tá desafinada a ambulância. Não tá no tom, isso é que é trágico no Brasil.)
Então lá pra 1964, comecei a ser profissional. Fui convidado pra substituir o Roberto Nascimento, como violonista do show. Era a peça 'Opinião'. Aí eu, com João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão. Nara saiu e Bethânia veio pro Rio substituí-la e foi morar lá em casa. A Bethânia hospedada lá em casa, minha casa virou um núcleo de, de,... (um gesto) ia dizer baianos, mas baianos são piauienses, pernambucanos, gente de toda parte. Conheci mais um pessoal, a Gal, aí Torquato, Capinam também. Aí Zé Kéti, de um lado, começa a me revelar um outro mundo musical fantástico, João do Vale do outro: a forma da memória que eles traziam da Bahia. E começa outra história.
Outro dia, Capinam me revelou uma coisa que eu fiquei até surpreso. A música que mais gosto da chamada Tropicália tinha sido feita no quarto dos fundos lá de casa e eu não sabia. É 'Clarice'. Caetano e Capinam fizeram lá em casa e eu nunca soube disso: mas 'Clarice' foi feita na sua casa, naquele quartinho dos fundos, que tinha aquele beliche, um em cima e outro em baixo, dizendo frases e fazendo a música. E a música que eu mais amo dessa história toda é 'Clarice'.
Aí me casei com a Gisilda Santos, irmã do Turíbio dos Santos, que aliás, eu ficava impressionado com ele ficava tocando violão 24 horas por dia. Ele estava se preparando para o Festival Internacional de Violão em Paris. E ficava de olho no violão dele. O violão dele é esse que está aqui, (aponta). Ele ganhou o FIV e começou a experimentar violões alemães, franceses, espanhóis e deixou esse violãozinho assim..... dando sopa no salão... E eu disse: puxa! gosto tanto desse violão.. Aí ele me passou o violão por um preço simbólico. Vinte e tantos anos depois, ele me confessou: puxa, eu experimentei tanto violão na vida... aquele violão é o melhor. Você não quer... Eu digo: não.
Depois de anos morando em Nova York, o João Gilberto voltou e ia fazer um show no Canecão. E andou procurando
um violão. Qual é o melhor violão do Rio de Janeiro? Ele queria um Violão. O João bateu na minha porta e: me disseram que o seu violão é o melhor violão. É. O João, pô, o João...velha admiração. Tudo bem, mas acabou o show, traga o violão pra casa. Tudo prometido. Resultado: nem teve o show porque o Canecão é a pior casa de som do Brasil. E ele acabou desistindo. E o meu violão não aparecia. Porra, esse violão... Esperei mais uma semana e o violão nada... Esse violão... Aí eu soube onde estava João Gilberto, fui lá no hotel em Copacabana buscar o meu violão. E o João trancado no quarto. A sorte é que eu tinha comprado uma mariola e eu tava com essa mariola na mão. Tinha uns amigos, começamos a conversar do violão e falaram assim: pô, o João adora mariola. Eu digo: Ahhh!!! Então diga a ele que dou-lhe a mariola, mas ele me dá meu violão. Não deu outra. Troquei meu próprio violão pela minha própria mariola.
O Guilherme Araújo conheceu Maria Bethânia lá em casa e sacou que ali tinha uma mina de ouro enorme. Produziu o
primeiro show dela e me convidou pra fazer os arranjos e a direção musical. E me botou na mão o quinteto de um baterista que se chamava Edison Machado, a chave da bateria no Brasil. Samba com jazz, bossa nova, uma coisa. Lá fui eu assustado fazer a primeira direção musical. Eu era muito garoto, faz assim, assim, tudo muito certinho e tal. Ele era muito solto, muito balançado e me respeitou totalmente. Ele tocava sempre certinho, até o dia que ele começou a fazer uma divisão aqui, eu tive que cair numa divisão ali. Aí ele começou a quebrar, quebrar, quebrar... No final ele tava me ensinando divisão, quebra aqui, faz ali, tudo no ar. E a partir daí o quê: eu fiz a direção de Bethânia, fiz a direção musical e alguma orquestração da Gal, o de 69, o LP 'Le Gal', e do 'Cultura e Civilização', um disco que tá sumido por aí da Gal. E aí Caetano me convida para ir pra Londres fazer a direção musical e colaborar nos arranjos do LP 'Transa'...
O primeiro disco foi uma loucura, porque éramos eu, Tuti Moreno na bateria e o Lanny Gordin, na guitarra. Fomos pro porão do teatro Opinião, aqui no RJ, no meio daqueles restos de cenário. Nós ficamos os três ali tocando uma semana direto. Quando senti que estava uma coisa inteira, eu disse: tá pronto o disco. Entramos no estúdio e gravamos, os três. O Lanny tocou baixo, contrabaixo e depois ele botou as guitarras. Mas eu gravei tudo com violão, porque eu sempre quis tudo acústico. Eu não sei porque fizeram essa viagem toda pra depois desplugar tudo. Tinha que experimentar o barulho pra tirar da tomada.
Só o humor nos salva. Não há coisa mais séria do que o humor, não há pessoa mais séria que o humorista. A visão do humor é uma visão saudável na hora em que você raspa o drama. Porque as coisas são muito dramáticas, o mundo é dramático. Então você raspa o drama, você exacerba a realidade. Eu sempre gostei do ridículo no humor. Sempre gostei de Chaplin, Oscarito, meu ídolo é o Grande Otelo, que é um dos maiores atores do mundo e é das pessoas mais dramáticas do mundo. O humor salva até o ridículo, salva a dor, o humor é a salvação. E eu apliquei isso no meu trabalho. Ainda mais quando fiquei frente a frente com o Moreira da Silva que é o elogio do humor. Ver a coisa mais dramática através do humor, dar a volta por cima da dor.
A formação de rock era inevitável, porque na época antes de querer ser músico, era tudo uma influência de rock americano, 'Rock Around the Clock', Little Richards, Elvis. Até que você vai se descolonizando. Quando ouvi o violão do Nelson Cavaquinho, o Elvis desmontou pra mim. Não é que não seja bom, são duas coisas totalmente distintas. Mas como instrumento, como sonoridade, como identificação, caí no Nelson Cavaquinho, caí no Baden. Então cheguei à conclusão: Nelson Cavaquinho inventou essa forma de ser, Elvis inventou aquela forma de ser. O que vale é a invenção. Eu quero inventar uma forma de ser. Agora, naquela época a gente tava fazendo uma corruptela do rock que a gente ouviu. Aí quando eu ouço o 'Cultura e Civilização', tem aquela anarquia, a desmontagem do próprio rock. Outro dia fizeram um especial na rádio JB, do meu trabalho e das várias coisas que eu participei. Eu ouvi aquilo e disse: eu era heavy e não sabia! Não é esse rockinho que tá por aí não, era rockão, não tô esculhambando o rockinho, aliás tô sim. Tá pobre demais. O rock empobreceu. Não devia ser isso.
A busca do novo continua. Olha, duas pessoas que muito me influenciaram não estão nem na música, estão nas artes plásticas. Se há alguma coisa que me mantém vivo é o pensamento e a energia dessas duas pessoas. Uma é mineira: a Lígia Clark, que é a invenção, o pensamento puro da invenção e a concretização da busca dessa invenção. E o outro é Helio Oiticica, um out of control. Meus dois grandes amigos. E se de vez em quando eu baqueio, eu penso neles. Arte só existe, só tem um fundamento se for baseada na invenção. Se não, ela é nada.
Devem haver inventores na música brasileira nesse momento, mas não os vejo porque estamos soterrados com essa globalização idiota. Não há possibilidade de distinção entre quem tá inventando e quem não tá inventando. Tudo é. Isso mata o próprio sentido maior que é a invenção. O único bastião que existe é uma coisa chamada liberdade de expressão, que leva o indivíduo a ser o que ele é, a inventar-se e se reinventar. A saturação de informação acaba levando a coisa alguma. A gente precisa é de desinformação. Teve uma hora que eu tive que desligar tudo, deitei aqui e pensei: quem sou eu? E eu porra? Não é egoísmo não, porque de repente você tá com todo mundo e não tá com ninguém. É selvagem! Não é pessimismo não. Ollha que eu sou um pessimista otimista pra caralho! Mas tambem sou um otimista pessimista.
O mar... a água... nós viemos da água. E a emoção da partida e da chegada é sempre muito grande. E uma partida ou chegada de barco no mar não precisa ser Caymmi pra se emocionar. Eu não moro em SP porque não tem mar, não moro em Minas porque não tem mar. É uma questão de horizontalidade, o mar tem uma imensidão...e eu tenho essa fixação. Aprender a nadar, tudo.
Eu gosto muito de cinema. Inclusive influenciou a minha coisa de música, de apresentação. Porque cada música vira uma peça visual, eu gosto disso. Tem coisas que eu comecei a fazer visando estritamente visualizar a música. Contar a história de uma forma cinematográfica. Em algumas eu consegui, outras nem tanto.
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