09 dezembro 2011

Tom Zé

Revival das entrevistas publicadas na graffiti:

O TROVADOR ELÉTRICO
1996

Tom Zé é um inventor. Sua música transforma a MPB em novidade. Sua poesia, de brincadeiras e onomatopéias, fala da vida com simplicidade e brilho. Flui da boca de qualquer um que assista a seu show ou ouça seus discos. O músico baiano, um dos principais pilares da Tropicália, ficou afastado da música por muito tempo. Pensava em encostar seu violão quando David Byrne (ex-Talking Head) o descobriu. Byrne produziu uma coletânea e o último disco de Tom Zé. Esses dois discos fizeram Tom Zé um músico consagrado internacionalmente. Agora discutem as músicas do próximo disco que será lançado em dezembro. Formado em música, Tom Zé descarta o adjetivo de experimentalista. Movido pela curiosidade e o prazer de fazer diversão, revela-se um dos maiores nomes da música brasileira.

GRAFFITI- Como sua infância, em Irará, aparece no seu trabalho?
Tom Zé- Bom, tem um acervo muito grande. No mundo pré-gutemberguiano que eu vivia, que eu nasci, o alfabeto não era o centro axial da divulgação de cultura. O mundo tinha uma vida cultural muito rica apesar da ausênciado alfabeto, uma coisa de natureza oral. Guimarães Rosa e Euclides da Cunha foram testemunhas solenes dessa riqueza cultural, cósmica, metafísica. Toda criança, naquele tempo, era um ajudante da casa, uma mão de trabalho, não era consumidor de brinquedo e de televisão. Por exemplo: meu pai tinha loja. Logo que você já podia medirum metro de tecido e fazer uma conta de somar, você tava trabalhando. E na loja de meu pai, que vendia artigos mais pro homem da roça, eu acabei me encontrando com os costumes, o jeito, a maneira de viver e principalmente a língua do homem da roça do recôncavo da Bahia. É absolutamente igual ao que se lê no Guimarães Rosa.
Eu, fazendo uma árvore genealógica dessa cultura, vejo que isso veio dos portugueses. Eles tinham um amor pela cultura muito grande. Dessa forma, nasceu um tipo de língua capaz de compor cosmogonias, um tipo de procedimento onde tudo é cultura. Então eu tenho, primeiro de tudo, essa vontade de perseguir, de dar curso à curiosidade.

G- Como você descobriu a música?
TZ- Foi numa tarde qualquer de agosto de 54, eu já tinha 17 anos. Uma música que meu amigo Renato Martins me mostrou, em Irará. Me deu uma fisgada lá dentro e provocou meu interesse. Mobilizou a central atômica da juventude, aquela violência com que se procura fazer. Foi isso que me botou em música e eu comecei. Mandei comprar violão em Feira de Santana no dia seguinte. Lutava lá com os métodos do canhoto, aqueles métodos que tem três posições. Ficavadesesperado. Como é que o sujeito vai fazer alguma coisa só com isso? E então eu comecei a fazer canções. Como eu não tinha habilidade pra fazer canções bonitas pra namorada e tal, meu
desafio era passar três minutos na frente de uma pessoa, com o violão na mão, fazendo qualquer coisa que interessasse a pessoa. Dizendo qualquer texto, com uma música primária. E, afinal de contas, foi esse tipo de método que acabou prevalecendo o resto da minha vida. Até hoje, eu tento fazer o interesse, a diversão com a música sendo um veículo que eu uso, mas não é o ponto do qual eu parto.

G- Daí você foi estudar música...
TZ- No princípio não se pensou em estudar música. Naquele tempo eu tava no ginásio, fiz o colégio, todo mundo dizia que eu ia fazer advocacia. Depois, no entrevero entre o colégio e a advocacia, eu fui fisgado mais uma vez pela música. Agora já como uma atividade de trabalho. Eu trabalhava no CPC (Centro Popular de Cultura) como diretor de música. E então ali com o Capinam, o poeta, Elemésio Sales, nós elaboramos o “Bumba Meu Boi”, a “Chegança”, vários outros espetáculos, pecinhas de cordel, canções pelas ruas, nas passeatas. O pessoal do CPC me deu o conselho para eu estudar música. E acabei indo parar na Escola de Música. A gente era analfabeto. Praticamente em um ano tinha que aprender todas aquelas coisas, solfejar, ler um pouquinho de música, teoria musical e fazer o vestibular. Depois, em 64, quando a Revolução estourou, fiquei desamparado porque o CPC desapareceu, o emprego desapareceu. Eu ia sair da escola, quando o Ernst Wiedmer, o diretor, mandou me chamar e perguntou se era verdade que eu ia largar a escola. Eu disse: é realmente professor! Como eu passei em primeiro lugar, ele me ofereceu uma bolsa de estudos. Era 20 cruzeiros por mês, pagava 15 cruzeiros de pensão e tinha direito a restaurante universitário. Com isso, eu tive o prazer de desfrutar de uma das melhores escolas de música do mundo, que era a da Bahia naquele tempo.

G- E a gravação do primeiro disco?
TZ- Enquanto isso, me encontrei com os meninos e depois formaríamos o Tropicalismo. Um jornalista, chamado Orlando Senna, praticamente escalou o Tropicalismo. Ele virava pra mim e dizia: você precisa conhecer Gil e Caetano! virava pra Caetano e dizia: você precisa conhecer Tom Zé e Gil! Até que nós nos encontramos e ficamos mesmo curiosos com as coisas uns dos outros. Aí fizemos o primeiro show: “Nós por Exemplo”. Depois aquele outro show “A Velha Bossa Nova e a Nova Bossa Velha” e fomos chamados pelo Teatro de Arena pra fazer “Arena Canta Bahia”. Quando chegamos aqui, as gravadoras estavam (naquele tempo era curioso) procurando
a gente pra gravar. Fiz um primeiro compacto, na RCA, com “Maria do Colégio da Bahia” e “São Benedito”, duas canções minhas daquele tempo.

G- Como era a relação entre os músicos da Tropicália?
TZ- Bom, nós simplesmente convivíamos porque gostávamos uns dos outros. Eu, Caetano e Gil, que eram os compositores, Gal e Betânia, que eram mais cantoras. A gente gostava mais pelas diferenças do que pelas semelhanças. Outro dia a Gal Costa num programa de televisão disse assim: naquele tempo nós fazíamos bossa nova! E eu, como não sabia fazer bossa nova, nem tinha aquela qualidade de mestre que eles já tinham, fazia tropicalismo porque não tinha jeito, né? Você pode ver por essas duas músicas (“Maria...” “São Benedito”).
E o relacionamento era uma coisa de amigos, de simpatia, de conversar, de mostrar projetos e canções meio feitas e tal. Até o momento em que nós conseguimos realizar um pouco do sonho embrionário de fazer nossos primeiros exemplos mais bem acabados profissionalmente. Quando fizemos isso, a imprensa chamou de Tropicalismo.
Não pensávamos que ia ser uma coisa tão chocante, tão diferente do que circulava. A gente pensava que tava fazendo só mais uma canção.

G- Como foi o seu contato com a poesia concreta?
TZ- Desde um primeiro momento que começamos a aparecer, começou a ter gente contra nós. Saibam de uma coisa: o Tropicalismo, quando apareceu, foi combatido como alienação, entreguismo, música não-brasileira, traidores da pátria, o diabo! E apareciam algumas pessoas que defendiam aquela linha de procedimento. A mais forte foi a dos poetas concretos que promoveram a gente e tal. Então ficamos mais ou menos perto. De vez em quando, a gente trocava idéias, fazia coisas com idéias deles. Quando encontrávamos a poesia concreta, a gente tava reencontrando uma coisa que também tinha na nossa infância. A gente também tava reencontrando com: “é um dia, é um dado, é um dedo, chapéu de dedo é dedal”, com: “me, por cima de si, sem dó, sem se relar no sofá,” que era uma brincadeira que tinha no interior e eu acabei de aprontar. A gente convivia com essa coisa do som tendo tanta importância quanto o sentido, a sonoridade.

G- Tem um disco seu que chama “Todos os Olhos”, que tem uma capa do Décio Pignatari...
TZ- Quando eu ia fazer “Todos os Olhos”, nós estávamos sob uma época de censura muito chateante. Aí o Décio virou pra mim e disse assim: pô, esse disco com esse nome, essa canção chamada “Todos os Olhos”, a gente podia colocar o olho do cu na capa, né? Pô, que idéia legal, ainda mais nesse tempo de censura! A gente faz uma coisa bem close, ninguém vai descobrir. Ele tinha uma empresa de publicidade naquele tempo e saiu atrás de modelo. Quando ele falou que tinha que ter modelo eu fiquei espantado e acanhado, como homem do interior. Vai chamar uma moça pra dizer que vai fotografar o cu dela? Coisa mais estranha! E enfim ele começou a me mostrar as primeiras fotos. Eu olhava como um grande intelectual olhando pra um negócio muito científico, mas morto de vergonha. Enfim, acabamos escolhendo aquela coisa com a bola de gude no meio e aquilo conseguiu circular sem ninguém saber. Era assim, apenas uma coisa bonita, né? Circulou sem a censura descobrir durante muito tempo, nem a Gravadora Continental a gente teve coragem de dizer, eles não iam permitir.

G- O fato de você fazer experimentalismo não dificulta a ampliação do seu público?
TZ- Talvez pudesse dizer até que não faço experimentalismo. Eu pego instrumentos experimentais e tento fazer diversão com eles. Então meu métier é diversão, não é uma coisa intelectual. Pode me botar numa fábrica com duas dúzias de analfabetos que eles vão se divertir da mesma maneira. É uma coisa que usa a invenção. Eu tenho é ojeriza ao tédio. E a determinação, a pugnação pela diversão, pela alegria. Tá bom que eu tô com 59 anos
e quase que custei minha vida toda mas você encontra a aceitação com o tempo.... Talvez as mídias não façam grande folia. Mas hoje, a perseguição do interessante praticada nas pregas, nas entrelinhas, nas cavernas do conhecimento boca a boca da classe universitária, acaba funcionando como um grande mídia de massa. E também teve uma coisa que aumentou a curiosidade no Brasil que foi essa aceitação no exterior.

G- Você ficou um longo período sem gravar nada.....
TZ- No momento em que eu fiz o “Todos os Olhos”, esse disco me tirou das mídias. Antes tocava em qualquer programa de rádio, ia todo dia na televisão. Eu pensava que ia ser uma alegria. Depois eu disse: puxa vida, que erro terrível que eu cometi, que disco desastrado! Hoje não posso dizer que cometi um erro de estratégia, posso dizer que fiz antes da hora. Eu morria de vergonha, se você me pegasse em 1980, eu nunca seria capaz de dizer um negócio desses: fez antes da hora. Eu achava isso pretensioso, boçal. Agora eu digo com naturalidade: o erro foi ter feito antes da hora. Mas eu adoeci, foram 17 anos. Quando chegou em 84, eu já tinha dificuldade
de me manter. E aí falei aqui em casa: é melhor procurar outro trabalho, isso até me dói mais do que me dá prazer. Você vai ficando doente por fluidos. Quem salvou a minha vida foi a macrobiótica.. Eu já tinha acertado de trabalhar no posto de gasolina com meu sobrinho, em Irará. Quando veio a notícia de que o Byrne vinha me procurar, aí eu falei assim: olha! vamos agüentar um pouquinho que vem uma criatura aí, ninguém sabe direito o que vai acontecer.... E realmente deu essa reviravolta.

G- Como a arte e a ciência se misturam no eu trabalho?
TZ- Eu acho até difícil qualquer pessoa fazer a ligação do que eu quero. Mas em todo caso eu vou fazer uma história-metáfora. O nordestino gosta muito de ciência. Bom, a primeira vez que eu vi uma discussão sobre ciência foi na tenda de Tonhó, lá em Irará, na véspera da festa da Padroeira. O que provocou a conversa sobre ciência foi o colchão de mola. Ora, colchão de mola, pode parecer uma bobagem pra nós aqui hoje, mas naquele tempo era um assunto científico, porque ninguém nunca tinha chegado a 100 quilômetros de um colchão de mola.
Então era um objeto de especulação, era um objeto de invenção da ciência. Você só conhecia colchão feito com aqueles capinzinhos. Então as pessoas davam opinião, uns brincavam dizendo até que se você batia no colchão, batia com a cabeça no telhado. Indo na veia da ciência, eles diziam: os americanos, quando inventam uma coisa, são formidáveis. Aí o outro: não, os russos são mais perfeitos para invenções. Então você vê que desde pequeno eu vejo falar em ciências. Isso tá presente em tudo. Talvez seja por isso que eu goste de ler por exemplo: lógica,
astronomia, ou história, tem coisas que eu leio pra me divertir mesmo. Não ouço música hoje em dia. Eu me inspiro, pra fazer o trabalho que faço, geralmente em coisas de outras artes, vai lá a teoria dos quanta, do Heisenberg, a reconsideração de um tipo de espaço não-euclidiano, de uma lógica não-aristotélica, as coisas da semiótica do Charles Sanders Peirce, essas coisas acabam enriquecendo mais meu tino na direção da música do que música mesmo.

G- Qual é o processo de elaboração da sua música?
TZ- Rapaz, se eu contar, nêgo não vai acreditar. Eu trabalho fundamentalmente assim: aqui em casa eu tenho uma fita onde eu tenho um ritmo de samba gravado lento, gravado médio e acelerado. E tem uma marcha de carnaval e baião gravados também nessas três possibilidades. De vez em quando eu pego o baixo do violão, que depois vai se transformar em contrabaixo e guitarra. E vou tentando fazer um ostinato que intervenha no ritmo, que virá a ser gravado como base. Mas como percussão, não como contrabaixo normal. E então, quando acho algum ostinato que parece parte da bateria, contamina e degenera o ritmo e torna, por isso, ele mais interessante, eu aí começo a chegar em casa. Depois eu tento fazer nos cavaquinhos um contraponto rítmico-melódico em duas vozes, lá nos agudos, quase fugindo da tonalidade. Nem posso dizer que eu componho com tonalidade. Você faz um ostinato desses, que fica a vida toda, lá em dó maior. Em cima compõe uma coisa. E depois canta, é dó maior o tempo todo, não é tonalidade. E depois é que vou pensar o que fazer com isso. Uma vez tendo essa gostosa estrutura rítmica. E então fica isso: a bateria, o baixo e guitarra repetindo, fazendo
este ostinato, e os cavaquinhos fazendo um ostinato lá em cima. E então eu vou pensar em cantar, o que cantar e o que dizer. Geralmente o processo é esse.

G- Quais influências você tem na sua poesia?
TZ- É uma coisa que veio do trovador do século XII, e por consequência, do desafiante nordestino e de todo lugar. Tudo é semelhante. Tem também a minha aproximação com a poesia concreta. E meu gosto de fazer discursos não acabados, sugestões de pensamento que a pessoa pode se divertir com eles. Então geralmente são radicais de palavras, letras que não têm língua nenhuma:
“é um dia/ é um dado/ é um dedo ou, “ogodô, ogodô, ogodô, “talactactactac tamburim, telecotecotecoteco violão”, como se fosse uma descrição de uma festa, e “um AH e um OH”, “ó ó ó ó ó ó ó, paracatuzum, ê ê ê, paracatuzum”. Então fica fácil de cantar. Eu fiz isso sem pensar nessa estratégia. E acaba sendo uma coisa que não tendo língua, não precisa traduzir. Me dá a oportunidade de chegar em lugares e o público de qualquer país cantar.

G- Amor. quer dizer: “é trilha de lençóis e culpa, medo e maravilha...”
TZ- “... o amor é poço onde se despejam lixos e brilhantes, orações, não-sei-que-lá e traições”. Tem uma canção que eu tô perseguindo e agora eu acho que fiz ela, diz assim: “se você do amor guarda queixas, não vale a pena, deixa pra lá, o amor tem que ser, egoísta sim, desonesto e sem coração, sendo assim o melhor que se pode dizer, é, é, nada a dizer”. Então tem essas brincadeiras de procurar. É uma coisa curiosa essa de que todo mundo trata o amor como se ele fosse uma coisa trazedora só de prazeres. E o amor é o diabo, né? O amor é sempre os dois
extremos. Ou a felicidade imensa ou a profunda decepção. É uma coisa que não se controla, um bicho estranho. Não pode ser colocado dentro da moldura de um quadro. Ele é de uma independência e, por isso mesmo, de uma crueldade... É um pouco essa pilhéria que eu tô tentando trazer nesse texto.

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